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[[ACLAC, patrono José dos Reis]]
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[[João Belisário, sua vida e seus crimes]]

Edição atual tal como às 10h39min de 10 de novembro de 2015

José dos Reis, patrono da ACLAC

Caía a tarde e a brisa soprava mansamente. Pela estrada lamacenta Jaques caminhava penosamente. Há mais de dois anos que sua vida era aquela: andar de vila em vila, de cidade em cidade implorando a caridade pública. Às vezes passava sem comer e dormia pelas estradas, ao relento. Os pés nos chinelos sem sola estavam inchados e doíam muito — e para chegar a São Leopoldo ainda faltavam quase trinta quilômetros. A noite se aproximava enquanto, lá nos confins das campinas, a lua ia surgindo como uma enorme roda de carro alumiando a vastidão imensa dos pampas.

Jaques parou, olhou para todos os lados perscrutando e escutando atenciosamente. Nada viu e nem ouviu a não ser o som triste e melancólico do vento fazendo balançar os galhos flácidos das árvores. Sem forças para caminhar encostou-se ao barranco da estrada disposto a descansar um pouco. Na posição em que ficara enxergou, a duzentos metros mais ou menos, à beira do caminho, uma capela para abrigar-se. A passos largos e vagarosos dirigiu-se para lá. Ao entrar no pequeno templo coberto de sapé, já iluminado pela luz clara da lua viu, aos pés da cruz enfeitada de flores, deitado de ilharga, um homem de 35 anos presumíveis, ressonando como um justo. Fitando o vulto aos pés da cruz, Jaques percebeu que não se tratava de um mendigo como ele. Podia ser algum vagabundo perseguido da polícia de Porto Alegre, ou um ladrão fugitivo da justiça. Podia ser também um pobre-diabo, vítima da má sorte, procurando afastar-se dos bulícios das grandes cidades. Podia ser um homem de mau instinto, perverso; mas também podia ter bom coração, bons sentimentos e atitudes nobres. Enquanto Jaques analisava o que podia ser o camarada, este abre os olhos e, bocejando, fita-o com curiosidade. Espreguiçando-se cumprimenta Jaques pronunciando, com voz sonora, um simpático “boa noite amigo”. A sorrir Jaques respondeu ao cumprimento.

— Pelo que vejo o meu amigo está satisfeito e muito contente.

— Engana-se, caro senhor, julgando-me satisfeito e feliz. O meu sorriso não traduz felicidade e nem contentamento. Sorri porque chamou-me amigo quando não o conheço, não sei de onde veio e para onde vai, o que faz ou o que deixa de fazer. Porém, não me interessa o que seja o senhor. Quanto a mim cumpro o meu destino mendigando de porta em porta, recebendo aqui um pedaço de pão, ali um prato de comida ou uma moeda de 200 ou 300 réis, recebendo às vezes blasfêmias, zombarias, insultos e escárnios que me fazem sofrer muito. Não tive a ventura de ser amado e acariciado por minha mãe, porque com poucas horas de vida fui atirado à porta de um casebre onde fui recolhido por um casal de gente boa e caritativa. Aos dois anos fiquei “órfão” vivendo desde então sem um coração amigo para me consolar. Não tive a felicidade de amar e ser amado, como todos, continuando só e isolado no mundo. Assim vivi anos a fio até que um dia… quebrei-me ao descarregar um navio atracado nas docas de Santos. Desde então a minha vida tem sido um eterno sofrimento.

— Console-se, amigo, console-se! Nunca recorri à caridade pública para viver. De espírito independente jamais soube bajular. Mas tenho sofrido um “mucado”. Chegue um pouco mais para cá, sente-se aí nesta pedra e escute a minha história.

O luar, claro como o dia, alumiava os dois desconhecidos que o acaso juntara naquele lugar. Jaques sentou-se, esticou as pernas doridas e esperou. O desconhecido suspirou tristemente e começou a contar a sua vida: “Com quatro para cinco anos de idade comecei a compreender que vivia porque comia, dormia e brincava, compreendendo também que meu pai trabalhava todos os dias para dar a mim, a meus manos Saldy e Merry, o que comer e o que vestir, auxiliado por minha mãe que fazia crochê até altas horas da noite. Comecei a compreender também que perto de nós moravam outras crianças que calçavam sapatos e vestiam roupas bonitas; que brincavam de pega-pega sem olhar para nós de vestidinhos rotos e pés descalços. Quase junto de nossa casa ficava o mercado onde, aos domingos, abundavam os jacás de frutas: laranja, lima, banana e a gostosa “guaiava”. Feixes de cana caiana, dúzias de rapadura e queijos vindos de Pouso Alegre, enchiam o enorme barracão.

— Pai, me dá um vintém para mim comprar “guaiavas”?

— Tá, menino, dois vinténs, mas me traga o troco. Satisfeito, corria ao mercado comprar um vintém de goiabas. À tarde, quando os roceiros deixavam o ranchão que servia de mercado, eu e outros moleques pobres procurávamos pelas folhas secas espalhadas pelo chão algum dedo de banana jogado fora pelo bananeiro. Às vezes achávamos, outras não. Meu pai ficava zangado quando da janela de nossa casa me enxergava a remexer os bagaços de frutas estragadas. Chegava a me bater sem, contudo, conseguir evitar que no domingo seguinte seu filhinho lá estivesse a fuçar as folhas secas.

* * *

Aos sete anos fui para a escola levando comigo uma pedra para fazer contas, um ABC que havia custado um tostão e uma tabuada do mesmo preço. O professor, de cabelos brancos e olhar severo, mas educado e carinhoso, colocou-me junto a outro moleque de nome Mário, que se não me engano era da Silveira, ruim como uma peste e perverso como Satanás. Logo que sentei-me o diabo do menino lascou-me um beliscão daquele jeito obrigando-me a gritar sem querer. O professor veio até nossa carteira e eu ergui a calça curta mostrando-lhe, um pouco acima do joelho direito, o sinal já preto dado pelo companheiro de banco. O mestre agarrou o menino pelas orelhas e dizendo “precipício da humanidade, precipício da humanidade”, carregou-o até uma mesa em frente à porta de saída colocando-o de joelhos, em cima, olhando para a rua.

Na escola desse velho professor estive três anos findo os quais tive de deixá-la para ajudar meu pai que era pobre. Nessa ocasião comecei a estudar música e a namorar uma garotinha quase da minha idade, muito esperta e bonitinha. Tinha eu nessa época dez anos de idade. Aos 11 podia transmitir, através do som de meu instrumento, tudo o que sentia dentro de mim, em serenatas que se prolongavam até madrugada nas noites frias, escuras ou enluaradas. Aos 14 anos perdi meu pai e aos 15 minha mãe, sendo então levado para a casa de um tio rico residente no Rio de Janeiro. Com dificuldades fui me acostumando às “etiquetas” da casa e à mudança do meio — e à medida que ia me acostumando, ia também observando o ambiente social da Cidade Maravilhosa. Assim pude notar que dos frequentadores dos salões grã-finos uma parte compunha-se de falsos industriais e de falsos banqueiros, encartolados, e de “madames” que deixavam os lares para os rendez- vous depois de uma reunião dançante ou de um baile de aniversário em casa de uma amiga distinta. Aos poucos fui me integrando naquele ambiente até que um dia… (Oh! Nem quero me lembrar!) notei que Jurema, a mulher de meu tio, olhava-me com insistência como se quisesse me devorar. Tinha eu 19 anos incompletos e frequentava uma escola uma escola de comércio à rua Visconde de Itaúna. Meu tio viajara para São Paulo deixando-me em companhia de Jurema e da criada, Maria.

Alta, morena clara, de rosto oval e cheia de corpo, minha tia tinha os olhos grandes, pretos, tentadores e fascinantes. Eu possuía um coração jovem e inexperiente. Naquela mesma noite — há quantos anos, quantos! — tornamo-nos amantes. Perdidamente apaixonado pela mulher de meu tio tornei-me absorto, tristonho, distraído e inconsciente, enquanto ela mostrava-se disposta a enfrentar o desconhecido. Ao regressar de São Paulo meu tio notou algo de diferente em nossas fisionomias. Contudo nada disse. Cinco dias depois, com seu pijama numa maleta, comunicou-nos que iria a Campos onde um negócio urgente exigia a sua presença. Tomaria o avião das 15 horas e regressaria no dia seguinte, de manhã. Sem escondermos a nossa alegria aguardamos a sua partida. Às duas e meia ele despediu-se tomando um carro para o Aeroporto Santos Dumont. Nem bem havia chegado à primeira esquina já estávamos entrelaçados nos braços um do outro, como se o mundo nos pertencesse. À noite fomos ao Teatro João Caetano, ceamos no Excelsior e regressamos às onze e quarenta e cinco num luxuoso carro de praça. Entramos, tomamos dois cálices de vinho do Porto e fomos dormir. Não tínhamos ainda apagado a luz quando, à porta do quarto, muito pálido, meu tio apareceu olhando-nos com desdém enquanto ia dizendo vagarosamente: — “Apenas queria certificar-me da verdade. Não fosse esse moleque filho de minha irmã e eu saberia como resolver tudo dentro de alguns instantes. Entretanto, deixo-os em paz”. Petrificados diante do que vimos e ouvimos não tivemos ânimo para nos levantar.

No dia seguinte de manhã meu tio mudava-se para o 10º andar da A Noite onde possuía um apartamento, constituindo advogado para tratar do desquite. Três meses depois, por sentença judiciária, estava julgada a ação e legalmente separado o casal que há oito anos vivia na mais completa harmonia. Mas Jurema pertencia a uma família distinta e tinha muita amizade para viver em companhia de um criançola, na Cidade Maravilhosa. Um corretor foi incumbido da venda de dois prédios situados em Copacabana e uma chácara nas proximidades de São Cristóvão. Transformadas essas propriedades em moedas correntes do país, tomamos o Cruzeiro do Sul e desembarcamos na Estação Presidente Roosevelt rumando para o Palace Hotel onde ficamos hospedados.

Quinze dias depois ocupávamos um palacete na avenida Brigadeiro Luiz Antônio a poucos minutos do centro. Dentro de dois ou três meses tínhamos boas amizades e eu, para matar o tempo, abri um escritório de corretagem no 12º andar do nº 23 do largo da Misericórdia. Um ano depois nasceu o nosso primeiro filho que se chamou Tiago, em homenagem ao pai de Jurema que também tinha esse nome. E a vida continuou risonha e tranquila como se vivêssemos no mundo da lua.

Um dia, dona Antonieta, senhora do Sr. Tancredo Filadelfo, ilustrado advogado e nosso vizinho, disse a Jurema: — “Se eu estivesse em seu lugar, Jurema, não vacilaria um momento, indo casar-me no Uruguai.”

— Qual, Antonieta, responde-lhe dona Miquelina, esposa do dr. Eufrásio, que também estava presente, esse negócio de casamento no Uruguai não passa de tapeação. O casal deixa São Paulo ou Rio, toma um avião para Porto Alegre ou Belo Horizonte, passa fora dez ou quinze dias e regressa com a situação “legalizada” no Uruguai. Ora, Antonieta, o casamento no Uruguai não passa de uma mancebia que a sociedade finge aceitar. Eu acho isso até ridículo.

— Depende, Miquelina, depende.

— Qual depende, qual nada! “Quem ama com fé…” o resto é peta.

— Pontos de vista, Miquelina, pontos de vista.

Eu e Jurema nada dissemos. Quando Tiago completou um ano e doze dias nasceu o nosso segundo pimpolho que foi registrado com o nome de Péricles. Nossa casa era frequentada por pessoas da mais alta representação social — e como não podia deixar de ser, Jurema retribuía essas visitas frequentando, em companhia das amigas, os clubes chiques e os salões do Esplanada e do Excelsior. Eu, quando não ficava em casa dava umas voltas pelo triângulo namorando as vitrinas ou tomando refrescos pelos bares. Tudo corria maravilhosamente bem. Entretanto alguns meses depois do nascimento de Péricles, notei qualquer coisa no tratamento e nos gestos de Jurema. Parecia triste e aborrecida. Perguntei-lhe se estava doente, recebendo resposta negativa: nada estava sentindo. Às nove horas, todos os dias, eu seguia para o escritório onde trabalhava até as doze quando voltava para almoçar. Às duas regressava ao trabalho, voltando às seis para o jantar. Cada dia que passava mais me convencia de que Jurema não era a mesma de dois anos atrás, embora continuasse carinhosa e brincalhona. Mas os seus gestos involuntários ligados à sua constante distração deram-me tratos à bola, até que resolvi desvendar o mistério.

No dia seguinte, quando cheguei ao escritório, dei ordens à empregada para, se telefonassem de casa, dizer que eu havia saído para tomar um café. E voltei para observar o que de anormal havia. Nas imediações da casa estive até às onze horas sem ver nada de extraordinário. Entrei para almoçar. Às duas menos vinte bati o portão e subi a pé quase um quarteirão para tomar o bonde. Mas não tomei bonde nenhum voltando ao posto de observação. Às duas e trinta e cinco o Mercury cinza-claro de dona Marlene, a vizinha da direita e senhora do dr. Basileu, parou em frente à nossa casa dando uma buzinada. Não esperou mais que minutos e Jurema sentava-se a seu lado na direção. Olhei em todas as direções sem divisar um automóvel enquanto o Mercury desaparecia na primeira curva da avenida.

Sem poder acreditar que dona Marlene, com um esposo rico e popular como o dr. Basileu, pudesse prevaricar, pensei que tinham ido à cidade fazer algumas compras. Mas a dúvida e a desconfiança conservaram-me no posto de observação. Às cinco e meia Jurema desceu do luxuoso carro no portão de nossa casa e dona Marlene no terceiro prédio da direita. Às seis e quarenta e cinco entrei para o jantar, que correu alegre como todos os dias, fazendo eu uma força danada para não trair o meu estado de espírito. Como nada me disseram também nada perguntei. No outro dia quando desci do bonde para o almoço um automóvel de praça estava estacionado do lado oposto de casa aguardando minhas ordens.

Às mesmas horas do dia anterior dona Marlene, bonita como ninguém, buzinou seu automóvel chamando por Jurema que não se fez esperar. O Mercury partiu conduzindo as duas enquanto eu, no outro automóvel, seguia-o de perto. Subimos a avenida e entramos na cidade pelo largo de São Francisco descendo a rua São Bento até a praça do Patriarca;daí o Mercury desceu a avenida São João até em frente ao 286 onde parou para que as mulheres descessem, encaminhando ambas ao referido edifício onde tomaram o elevador. Não perdi tempo — e quando o elevador desceu tomei-o indagando do ascensorista o destino das duas mulheres.

— Se não me engano, desceram no 10º, respondeu-me ele num sorriso malicioso.

— Obrigado, pois também desço. Mas no 10º, tudo era silêncio e não se via ninguém. Andei de corredor em corredor e quando desanimado me propunha a descer surge na minha frente, fechando uma das portas da esquerda, um senhor simpático e respeitoso. Perguntei-lhe se não havia visto duas senhoras assim assim.

— Não vi, respondeu-me, e sendo este andar somente de apartamentos a estas horas o pessoal deve estar fora. Fiquei de prontidão perto do elevador até que não pude mais. Desci e de dentro do carro fiquei aguardando os acontecimentos. Às cinco horas as duas desceram acompanhadas de dois senhores ainda moços, bem trajados e de anéis brilhantes nos dedos. Tomaram o Mercury e subiram a avenida até a praça Patriarca, subindo pela rua Quinze de Novembro até a praça da Sé onde os dois gajos desceram. Aí paguei o motorista e me dirigi ao bar São Paulo tomando uma garapa gelada com limão. Às seis e meia fui para casa. Ao olhar para Jurema sentia desfalecer-me, mas reagi e não dei demonstração de fraqueza enquanto ela era sempre a mesma: alegre, contente e risonha. Naquele dia não pude jantar protestando indisposição e mal-estar. Também não dormi durante a noite, pensando nos acontecimentos do dia. Ao amanhecer adormeci para levantar-me às oito e meia. Às nove fui para o escritório e às dez e meia entrava no 286 da avenida São João. Pelo ascensorista da manhã soube que o 10º andar era de apartamentos, funcionando no de número 203 um rendez-vous sw grã-finos. Dentro de quinze minutos conversava eu com a “proprietária” do referido apartamento, tendo me apresentado como engenheiro residente na Vila Mariana.

Uma lista das senhoras que frequentavam a casa, com várias fotografias, foi-me apresentada com a seguinte observação: — “São todas senhoras decentes, doutor, com residências nos melhores bairros da capital”. Da lista faziam parte Jurema e dona Marlene, com seus respectivos telefones. Fiz-me de tolo e perguntei por “aquela” Jurema dizendo simpatizar-me pelo nome. Eudóxia, era este o nome da mulher com quem conversava, fez-me uma descrição direitinha da antiga mulher de meu tio, elogiando a sua beleza, a sua expansividade e a sua voluptuosidade. Contou-me que dois advogados e um dentista andavam perdidos de amor por ela, mas que Jurema preferia um deputado, de meia-idade, com quem saía algumas vezes. Deixei o 286 desiludido, sem coragem de voltar para casa, passando o resto do dia e a noite rodando pelas ruas da capital garoenta. No dia seguinte telefonei-lhe dizendo estar em Santos e necessitar vê-la em seguida. Dei tempo a que ela partisse e me dirigi para casa. Em meia hora arrumei a mala, despedi-me das crianças e deixei com a Maria um bilhete para lhe ser entregue narrando os acontecimentos dos últimos dias e despedindo-me dela para sempre.

Rumei para a Estação da Sorocabana e tomei o primeiro trem para o interior, perambulando de cidade em cidade. Vinte dias depois estava eu em Assis — e ao ouvir a Record, a voz do locutor anunciou: “Uma senhora da sociedade paulistana põe termo à vida ingerindo forte dose de veneno arrastando consigo, na voragem da morte, duas inocentes crianças. O drama teve por palco o palacete nº 7.010 da Av. Brigadeiro Luiz Antônio onde residia dona Jurema Soares da Silva, protagonista e figura principal da tragédia. As crianças foram encontradas nos braços da mãe, uma de cada lado, como se tivesse havido um pacto de morte entre mãe e filhos. Por enquanto não se conhecem os motivos que determinaram tão extrema resolução por parte de dona Jurema”. Não ouvi mais nada deixando o hotel e dirigindo-me à estação de estrada de ferro. O trem para São Paulo só partiria oito horas depois. Pensei em tomar um auto, mas o dinheiro que possuía era insuficiente para a viagem. Pelas ruas de Assis vaguei como um autômato até que o Ouro Verde chegou. Tomei-o sem comprar passagem, pagando-a em viagem ao chefe do trem. Em Palmital soubemos que entre as estações de Salto Grande e Ourinhos a linha estava obstruída em razão do desmoronamento de um dos lados do barranco com o desprendimento de uma enorme laje. Em Pau d’Alho, o trem parou aguardando ordem para prosseguir viagem. Naquela estação estivemos nada menos de cinco horas para pararmos mais duas durante a baldeação que tivemos de fazer no trecho obstruído. Resultado: quando cheguei em São Paulo nada mais alcancei e a casa estava fechada. Fiquei por ali algumas horas, não me lembro quantas, até que perdi o senso de tudo.

* * *

No Manicômio do Juqueri estive internado muito anos até que um dia fugi para o estado de Minas onde arranjei trabalho honesto e rendoso. Mas Jurema, Tiago e Péricles não me largavam um instante sequer surgindo, de vez em quando entre eles, a figura ainda moça de meu tio, de cabelos brancos e faces encarquilhadas. Não sei bem o que eu sentia nesses momentos. Seria medo? Pavor? Remorsos?… Cinco anos convivi com a gente simpática e boa daquela bela e encantadora Pouso Alegre, cognominada a Princesa Sul-mineira. Um gaúcho que apareceu por lá em viagem de recreio trouxe-me para Porto Alegre colocando-me como escriturário no Banco Metropolitano. Aos poucos fui captando a simpatia dos chefes até que há seis meses fui nomeado caixa com o ordenado de três mil cruzeiros mensais. Até o dia em que comecei a trabalhar como caixa não havia tido ambições, mas daquele dia em diante… não sei por que, senti uma vontade doida, irresistível, de tornar-me rico, admirado e poderoso como os que possuíam milhões. Tornei-me jogador perdendo vários contos de réis pertencentes ao banco. Fugi para São Leopoldo e lá estive até hoje de manhã, sem vintém nos bolsos, estando por isto disposto a entregar-me à justiça de Porto Alegre. Chega de fazer vítimas.

Na prisão sofrerei sozinho e não interceptarei a felicidade de ninguém fazendo o possível para lavar a nódoa que enegrece minha alma. Arrependido de tudo quanto fiz, sigo voluntariamente para o cárcere na esperança de purificar-me e poder sentir, quando tiver que partir, o coração limpo e a alma leve e satisfeita. Amanhã a estas mesmas horas estarei trancado entre quatro paredes me penitenciando da malfadada vida que levei!

— Sim, é muito triste a sua história; bem mais emocional que a minha, pois enquanto imploro um pedaço de pão para viver o senhor luta com todas as forças de que dispõe para “indenizar” o mal que causou aos outros. Enquanto eu me esforço para dar vida ao corpo o senhor procura um lenitivo para a alma atribulada.

— E hei de encontrá-lo no arrependimento dos maus atos que pratiquei e no sofrimento que há de ser o cadinho que purificará meu espírito.

— Contou-me sua história sem me dizer seu nome.

— Nome! Nome!… Poderia eu ter um nome depois do que lhe contei?

— E por que não?

— Porque só os dignos e honrados podem ter um nome, mas os que palmilham o caminho da desonra e da indignidade… Oh! Nem quero me lembrar de que me chamarão de ladrão!…

Pelas faces do mendigo, à luz da lua naquela Santa Cruz à beira da estrada, as lágrimas desciam lentamente numa demonstração de sentimentalismo e de solidariedade ao companheiro de infortúnio!…

Joanópolis, 1950

Referências:[editar]

ACLAC, patrono José dos Reis

João Belisário, sua vida e seus crimes