Cambuí, contos

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Levindo Lambert

“...meu pobre livro as asas larga Neste oceano sem fim, sombrio, eterno.” Castro Alves

Índice

Zé Batoque

I

Toda a gente o chamava de Zé Batoque, mas seu nome de batismo era José Balmaceda de Azevedo.

O físico não se ajustava bem ao apelido: magro e alto, rosto fino, chupado, zigomas salientes, sobrancelhas espessas e ásperas. O cabelo, um cabelo levemente aloirado, caía revolto sobre a testa, e por mais que o levantasse com os dedos em pente, e o repuxasse, e o alisasse, vinha sempre debruçar-se sobre os olhos, misturando-se às sobrancelhas numa desgraciosa confusão. A boca completamente desdentada vivia mordicando qualquer coisa desconhecida, num movimento frenético de masseteres e bochechas. Por esse motivo, também o chamavam ruminante, alcunha que não lhe agradava, é certo.

Não era bem conhecida a sua profissão: uns acreditavam vivesse de vender bilhetes de loterias; outros, jogador profissional; outros ainda o reputavam sem profissão.

Justos ou errados, o certo era que se Zé Batoque vivia num hotel de terceira classe, pagando mal a pensão, andava bem mal vestido… O velho jaquetão encardido levava um grande remendo nas costas, enquanto um enorme rasgão no quadril mostrava o cós da cueca de cor duvidosa. Usava sapatos amarelados, cambaios, cordões desamarrados e meias caídas sobre os tornozelos. Mas o que mais se notava em Zé Batoque era o vezo, o gosto particular, o verdadeiro hábito de lascar pedaços de madeira a canivete. Nasceu disso, talvez, a alcunha de Batoque, com que não se incomodava.

Punha-se de cócoras, horas a fio, à soleira da porta ou sob o beiral da casa, ouvindo anedotas, desfibrando palitos, paus de fósforos, pedaços de madeira. Qualquer rebotalho de tábua, lenha ou pau que lhe caísse nas mãos, estava logo feito lascas. Investia mesmo sobre cadeiras e móveis, quando lhe faltava o material adequado, principalmente quando partilhava, sempre mudo, é verdade, de uma palestra animada.

Se fechava o canivete e desprezava as achar de madeira, tomava logo o Guia Levi ou um catálogo telefônico ou um almanaque qualquer. Era outro vezo. Ficava horas e horas lendo com interesse, com cuidado, um catálogo de telefones. Gostava de encontrar ao lado do nome do doutor fulano, a rua em que morava e o número do aparelho. Ou então, ia, estação por estação, no guia de estrada de ferro, até o termino de uma viagem imaginária, calculando sempre o preço da passagem.

Qualquer jornal que lhe fosse às mãos, era justamente a página de anúncio que o interessava. Lia-o toda, de fio a pavio, sempre mordicando uma coisa em trismos mandibulares.

Era de todos estimado, principalmente das crianças. Repontasse no começo da rua, sempre metido num terno de casimira amarrotado, e logo a petizada anunciava:

? Lá vem o Batoque…

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Acertavam os que diziam que Zé Batoque vivia de vender bilhetes de loteria. Andava pelos bairros e fazendas, a pé, alimentando nos roceiros as esperanças da sorte grande. Não insistia: oferecia, apenas. Recusassem, e lá ia ele, desfiando a canivete o pau de fósforo, bater a outra porta. Muita vez, regressava ao Hotel com o maço de bilhetes, virgem. Mais lhe interessavam os gravetos e o canivete. Mais gosto lhe davam o machucar das gengivas desdentadas… ? Também ? diziam ? só vendia bilhetes de loteria brancos… II Não foi grande a emoção de Zé Batoque, ao conferir o bilhete que lhe sobrara das vendas, verificando que ganhara na loteria a polpuda soma de mil contos. Pelo menos, os que estavam presentes não lhe viram a menor mudança fisionômica. Continuou a mover os maxilares murchos e a levantar para o alto da cabeça, com os dedos em pente, os cabelos revoltos. Nada mais. Dada por finda a conferência de bilhetes, levemente risonho, acocorou-se ao sopé da porta do hotelzinho, então entupido de curiosos, sacou do canivete amolado e lá se foram os paus de fósforos e a respectiva caixa… Respondia calmamente às perguntas que lhe faziam; comentava com simplicidade a “sorte” que o bafejara, e, na intermitência dos sorrisos, desfibrava a soleira da porta ou machucava as gengivas. Era o mesmo Zé Batoque. ================ Mas, se para ele próprio continuava a ser o mesmo Zé Batoque, para a gente da cidade já não era assim: uns o chamavam de “seu Zé”, outros de “seu Zé Azevedo”, outros ainda de “seu Balmaceda”. Zé Batoque, de princípio, não notou a mudança. Vivia embebido com os seus palitos e com as suas bochechas. Não recebera ainda o dinheiro da loteria e, malgrado passassem já quase quinze dias, o recebimento não o tentava. Adiava sempre a viagem à Capital, devorando os anúncios dos jornais, esgaravatando a soleira da porta e martelando os queixos moles. Só a pouco e pouco foi percebendo a transformação que se operava em torno de si: os salamaleques dos conhecidos, a requintada aproximação dos amigos. Essa observação não o perturbou nem modificou os seus hábitos.

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O recebimento dos mil contos deu a Zé Batoque apenas uma nova indumentária. Nada mais. Também ? é verdade ? não vendeu mais bilhetes. E entrou a pagar bem o Hotel. E foi só. O resto, a mesma vidinha simples e descuidada. O mesmo chupar de bochechas. O mesmo descortiçar de paus a canivete. A mesma leitura insossa de almanaques e anúncios de jornais. III Abre-se uma clareira luminosa na vida de José Balmaceda de Azevedo. A Celuta, a trêfega filha do coronel Mascarenhas, embarafustara-se-lhe pela existência. Tomara assento em seu coração. ? Quem o dizia? Ele, somente ele, Zé Batoque. Quem o examinasse no costumeiro sestro de morder as bochechas e de rachar palito, não diria que lhe crepitava alguma coisa dentro d’alma, alguma coisa que o desambientaria daí a pouco. Mas, era assim. O velho coronel Mascarenhas perdia a pouco e pouco a fazenda, o cinema, a loja de ferragens e a casa da cidade. Finalmente, a ameaça da falência. Um desmoronamento. E foi por isso que os olhos tentadores da filha correram para o lado do antigo Zé Batoque, então feito o respeitável senhor José Balmaceda de Azevedo. Os mil contos esconderiam o apelido pejorativo e as inocente manias do antigo vendedor de bilhetes. E seria fatalmente o retorno ao conforto e prosperidade abalados.

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Não é preciso dizer que se fez o namoro, como decorreu o noivado e de que jeito foi o casamento. Se o Balmaceda (não lhe daremos mais o apelido, não), se o Balmaceda sentia a alma ardente, o coração cheio de afeto por sua formosa esposa, ninguém o percebia. Uma coisa, no entanto, foi logo notada: não trazia canivete no bolso e só uma vez ou outra ajeitava levemente as mandíbulas como quem mordica qualquer coisa. Iam-se-lhe desaparecendo os cacoetes à medida que ia passando a lua de mel… Só lhe ficara o gosto estranho e inveterado pelo Guia Levi, pelos catálogos telefônicos e anúncios de jornal… Arraigara-se-lhe em hábitos. E nas soalheiras, na varanda florida e iluminada do bangalô, então na grande Capital, perdia-se na leitura predileta, horas e horas, baloiçando-se suavemente. Se amou ou amava a jovem esposa, não se sabia. Os fatos não atestavam. Sabia-se que a figura canhestra do antigo vendedor de bilhetes era um contraste diante da silhueta elegante da filha do coronel Mascarenhas. Se sabia isso e se comentava à distância, ninguém podia verificar de forma positiva a discordância pessoal. Porque cada qual tinha o seu passeio predileto e nem iam juntos ao cinema… Conhecia-se a diferença através da personalidade isolada de cada um: ela, formosa, esbelta, escandalosamente bem vestida; ele: alto, magro, dentadura postiça, cabeleira eriçada… Ela, o modelo da antiga cidadezinha do interior, então bem distante; ele, muito parecido com o popular Zé Batoque, mas não era o Zé Batoque… Se se amavam, não se sabia…

IV

Balmaceda recebe uma carta. Deixa os anúncios do jornal. Rasga displicentemente o envoltório. Lê. Remorde os beiços, tritura as gengivas, chupa as bochechas. Dizia a carta: “O dr. Marçal é amante de sua senhora. Verifique”. Dizia pouca coisa. Quem o visse ler a carta diria que era coisa de nenhuma importância. O dr. Marçal era o médico da casa e vinha diariamente aplicar injeções em Celuta. Ora, aplicar injeções não era, evidentemente, cavar adultérios… Balmaceda com certeza pensou assim. Guardou a carta e retomou o jornal. E foi assim até o fim dos anúncios…

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Os amigos de Balmaceda notavam, com surpresa, que depois de tanto tempo, ele readquirira os hábitos de destruir palitos a canivete e de mordicar as gengivas em tiques nervosos… V A claridade da manhã enche de doçura e mansuetude a confortável residência de José Balmaceda de Azevedo. Fora, na ramagem do jardim, cigarras vagabundas põem gritos agudos no ambiente morno, e pássaros irrequietos, de galho em galho, preparam, sobre a volúpia dos ninhos, as núpcias das asas. Balmaceda relê os anúncios dos jornais do dia. Perto da cadeira, pedaços de madeira, restos de palitos, fibras de pau, mostram o vício redivivo. Casualmente, Balmaceda levanta os olhos. O espelho do salão reflete um quadro interessante: os braços roliços de Celuta envolvem o corpo elegante do dr. Marçal, num abraço enervante… Balmaceda demora os olhos quietos sobre o quadro que a indiscrição do espelho lhe mostra. Chupa os lábios e morde as gengivas desdentadas. Demora. Cisma. Paira depois o olhar no espaço, vagamente, imperturbado. Retoma o jornal e continua a leitura dos anúncios. Vai até o fim. ? O espelho mentiria? Olha outra vez: um beijo prolongado, voluptuoso, une o peito largo do médico ao busto delicado da esposa. A boca emurchecida de Balmaceda abre-se em rito. E é só, naquele rosto fino e chupado pelo hábito inveterado. Não mordica as gengivas. Certo, há uma inibição do centro nervoso. Depois, o olhar vago, amortecido, quase triste; as pálpebras semicerradas sob o dossel cabeludo das fartas sobrancelhas… As cigarras gritam ao sol claro da manhã. Passam insetos pelo ar. Trinam passarinhos. O bulício da cidade, os rumores da civilização, misturam-se àquele cheiro de jardim, àquele bater de asas, àquele zumbir de insetos… Balmaceda baixa os olhos sobre as aparas de madeira, sobre as páginas de anúncios de jornais, sobre os catálogos telefônicos e guias de estradas de ferro. Um leve sorriso vai-lhe à comissura dos lábios. Levanta-se calmo, firme. Desce a escada de mármore branco. Revolve no porão da casa qualquer coisa mofada, encardida, rota. Depois, indiferente, escreve: “Celuta: Aí vai em cheque ao portador todo o dinheiro que possuo. Fique com ele. É seu. Reparta-o se quiser com o dr. Marçal. (a) Balmaceda”. Releu a carta. Pingou os is e consertou a grafia. Dobrou-a e saiu. VI No dia seguinte, pelo trem da tarde, o hotel de terceira classe da cidadezinha do interior ganhava mais um pensionista. Sobre a soleira da porta, metido num terno de casimira amarrotado, sapatos cambaios, cordões desamarrados, José Balmaceda de Azevedo voltava a ser Zé Batoque, quebrando palitos, mordendo os beiços e vendendo bilhetes de loteria…

Uma aventura singular

Vieram-me que me chamavam ao telefone. Atendi. Uma voz de mulher, que eu percebi ligeiramente tremula, indagou por mim: — Mas é você mesmo? — Perfeitamente, minha senhora. Um momento de silêncio e a mesma voz continuou: — Não sou feia e garanto e lhe garanto que a minha idade não atinge a casa dos trinta. Espero-o às 15h no Parque junto à ponte dos Suspiros. Levo um vestido verde. E desligou o fone. Não sou dado a aventuras amorosas. Sem ser santo, evito, como posso, as tentações que andam por toda parte disfarçadas de mulher bonita. Mas, nem sei por quê, senti palpitar intensamente o desejo de decifrar aquele enigma. Um vestido verde, perdido na folhagem verde do Parque e junto das águas verdes do lago, francamente, me encantava. Nove horas. Deixei o serviço. Barbeei-me, estudei umas frases poéticas e aguardei impaciente o andar tardo do relógio. Não quis, porém, chegar antes da hora. Todos os grandes enamorados que a história registra souberam fingir desinteresse pelas mulheres. Também a minha impaciência interna não me fez chegar atrasado, como talvez aconselhasse o doutor Ovídio. Lá estava o vestido verde. Percebi que a informação não fora exagerada: clara e loira, aquele vestido dava-lhe aspecto de beleza simples e encantadora. Aproximei-me. Confesso que me senti embaraçado. Um noivo de roça, de paletó de sarjão e botina de elástico, não teria, pensei, uma atitude mais canhestra… Todavia, procurei reagir. É verdade que as frases estudadas falharam completamente, mas a doçura daquele olhar e a suavidade que emanava de seu perfil delicado puderam inspirar-me e encher-me de imagens ricas e poéticas. Creio que cheguei a improvisar alguns versos. Um casal de cisnes que deslizava mansamente sob a ponte, espichando o pescoço branco e fino, mereceu-me um solilóquio cheio de inspiradas comparações. E quando um aeroplano burguês e barulhento esvoaçava sobre nossas cabeças, outro motivo surgiu para novas arrancadas líricas… Francamente, falavam-me os cinco sentidos. Os cinco, não: cantavam-me n’alma todos os sentidos… Helena — e era mesmo o tipo grego de Helena — enchia-me o ambiente. Sua voz macia e doce calava-me o espírito. Voz penetrante, levemente trêmula, riscada de sorriso, pontilhada de promessas. Andávamos, lado a lado, machucando a relva dos canteiros, invejando a terna felicidade dos cisnes…

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Esperei o tilintar do telefone dias a fio. Ia mais cedo para a repartição, na ânsia de reatar o idílio interrompido, e só me retirava quando o porteiro, impertinente, ameaçava trancar-me na sala. Tornei-me nervoso, irritado, intolerável. Minha esposa, boa e santa criatura, pressentiu a desgraça iminente. Andava com os olhos vermelhos de chorar. Jejuava e não dormia. Voltei ao Parque várias vezes. Recostei-me à grade da ponte, e palmilhei sozinho as alamedas, e machuquei o capinzal dos canteiros, e procurei no ar um perfume conhecido e distante… Em vão! Pungiam-me uma saudade atroz, um desejo insatisfeito, um sonho irrealizado e impossível… Dois meses depois — somente dois meses depois! — quando se esgarçava nos meus sentidos a sensação daquele encontro, rasgo displicentemente um invólucro: “Meu caro: Não me esqueci de você, creia. E é natural que não me esquecesse. Se o convidei para um encontro é que algum sentimento me incitava a procurá-lo. Venha ver-me hoje, no mesmo local e às mesmas horas. Helena”. Saí cantarolando sob o olhar curioso e espantado dos funcionários da repartição. Ah! Um sol esplêndido iluminava-me a alma! O jardim da Praça escancarava para mim a boca vermelha das rosas e enchia o ar de um cheiro conhecido dos meus sentidos… Era ela que voltava, decerto, para o meu desejo.

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E voltou mesmo! Voltou inebriante e misteriosa. Havia no seu olhar uma irradiação estranha. Luzia como pupilas de um animal faminto. Sob a curva das sobrancelhas feitas a crayon, despendia um brilho dantes não percebido. E fomos pelas áleas do Parque, tagarelando, sonhando, sentindo nas minhas mãos o crispar nervoso dos seus dedos e o cravar das suas unhas envernizadas.

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E a vida continuou… ao ritmo langoroso dos nossos passeios. Dia a dia, ombro a ombro, desfilávamos pelo Parque, despreocupados, trauteando o hino triunfal de nossa felicidade. A fronde amiga das árvores debruçava-se sobre nós e detinha para nós a orquestra festiva dos pardais. O olhar percuciente dos guardas desviava-se de nós, cúmplice de nosso amor, para gáudio dos nossos lábios, para a ânsia do nosso beijo…

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E a vida continuou… numa cabine da Central do Brasil. Se não teve as emoções sentimentais de uma viagem de núpcias, sobraram sensações jamais experimentadas. Helena surpreendeu-me. Aquela suavidade adivinhada no seu corpo, aquela doçura percebida na sua voz — encobriam apenas o fogo ardente de desejos insatisfeitos. O seu beijo recumava sensualidade mórbida. Vinha-lhe aos borbotões, entre apertos tentaculares de abraços e anseios ardentes e insopitáveis. Confesso que, de início, temi Helena. O seu hálito quente, ofegante, queimava-me a boca, e percebia ao contato de sua epiderme uma excitação viva e impressionante. Temi-a. Quis afrouxar o aperto dos seus braços e fugir da volúpia dos seus lábios. Mas, rendi-me, submisso, escravo dos meus sentidos… O estrondejar incessante da locomotiva abafava, depois, o ardor dos meus beijos no corpo capitoso daquela mulher formosa. Quando descemos em Cascadura, eu tinha diante de mim um mundo novo. Sentia impulsos de cantar o hino másculo da vitória e de proclamar aos quatro ventos o valor insuperável de Helena…

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— Quanto tempo vivemos assim? — Não sei. Não se mede o tempo pelo relógio do amor. Meses. Talvez anos. Não sei. E não fora a casualidade, certo a vida para nós continuaria assim, indefinidamente assim. Ah! Boa ou má casualidade! Eu saía despreocupado do dentista. Ela surgia à porta do médico. — Helena! — Você! E descemos. O elevador rangia e parava em cada andar para novos passageiros, enquanto eu apertava nas minhas mãos os dedos trêmulos e frios de Helena. — Que tens? — Nada. — Por que veio então ao médico? — À toa. E nervosa, desatenta, Helena deixa-me perplexo à porta do arranha-céu e toma rapidamente um táxi. Não pude detê-la. Nem me lembrei de fazê-lo. Desapareceu, silenciosa e preocupada, no torvelinho da Avenida. E fiquei ali, parado, quieto, incapaz de uma reação. Rodopiavam-me na imaginação, como o desenrolar rápido de um filme, todas as cenas de nosso amor. Todas. Uma a uma, céleres, vinham e desapareciam. E a figura singela e esbelta de Helena esvaía-se-me como um fiapo de fumaça… Não sei quanto tempo durou esse sonho. Talvez muito. Talvez… Torno ao elevador. Paro no nono andar. Bato à porta do dr. Agripino Seixas. — Que há, meu caro amigo? — Quase nada, Seixas, respondi, disfarçando o pulsar apressado do coração. Quase nada… E sentando-me, perguntei: — Conhece a mulher que saiu daqui há pouco? — Uma loira, clara, bonita? — Sim, essa mesma. — Ora! Se conheço? É a Helena… E com um leve sorriso nos lábios, perguntou ainda: — Por quê? Não pude responder-lhe. A voz parara-me na garganta. Baixei a cabeça, confundido, escravo de incontida emoção. Compreendi nesse instante a grandeza de meu amor. Mas procurei reagir. — Queria que você me dissesse, se não lhe proíbe a ética profissional, que veio ela fazer aqui. Seixas refletiu. Levantou-se. Foi ao fichário. Remexeu-o, puxou um cartão. Examinou-o. e pausadamente foi dizendo: — É verdade, a ética profissional proíbe-me responder-lhe. Parou. Examinou de novo a ficha. Levantou-se, caminhou a passos largos, a esmo, pelo gabinete. Foi ao espelho, alisou os cabelos. Voltou, de novo, a andar, constrangido, parando aqui, parando ali. Depois, mordendo os lábios, sentou-se no divã, a meu lado. — Proíbe sim, meu caro. Mas adivinho o que se passa em você, e é um dever de minha parte preveni-lo. E ficou outra vez silencioso. Um silêncio interminável. Um século! É possível que meu rosto contasse ao jovem médico a ânsia que me ia n’alma. Percebi a lua que se lhe travava na consciência. — Diga-me com franqueza e lhe prometo guardar reserva absoluta. — Confio em você, respondeu-me. — Helena é, desde muito tempo, declaradamente morfética…

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E o Fortunato Botelho, comprimindo a veia que lhe punha uma listra azul e túrgida no dorso da mão, rematava a sua história: — Mas eu afogo os bichinhos, meu caro, nesse néctar delicioso. E engolia, despreocupado, o décimo quinto chope duplo…


Contenda sertaneja

I

Zé-João encostou-se no moirão da porteira e espichou o olhar lânguido para os lados da casa de Sianinha. Ia-lhe qualquer coisa triste dentro d’alma. Uma ruga funda vincava-lhe a testa. Pôs-se quieto a cismar. Depois, comprimindo para cima e para baixo os fios de arame farpado, transpôs a cerca e enfiou-se pelo valo adentro. Caminhou, lépido, sorrateiro. A fenda cavada no solo, longitudinalmente, ia dar ao córrego, divida dos dois sítios. Zé-João, à margem do regato, parou, desconfiado. Escutou. Farfalhavam as frondes das marias-pretas e assa-peixes. Ao longe, o chó-ó-pan de um monjolo. Nada mais. Zé-João enveredou pelo trilho aberto no carrascal. Abria com as mãos as touceiras de capim-gordura debruçadas pelo trilho, quebrando os galhos das samambaias. Finalmente, parou diante do munjolo. Ajeitou-se, de cócoras, a pensar, ouvido para o ar, olhar atento. Levantou-se, de repente, saltou no meio da pinguela e embarafustou-se pela casinha de pau a pique, úmida e fria. — Zé-João! — Que é isso, Sianinha! Se assustou? — Não é susto, home. E se o pai vê? E a moça encostou-se tremendo às paredes de pau roliço, enquanto Zé-João, enleado, puxava para os pés a calça enrodilhada na perna. — Qual! A gente precisa arriscar… Faz tempo que não falo com você, Sianinha. E o batido do munjolo me deu coragem… — Mas, você é sem juízo. Se o pai vê é a nossa perdição. — É por isso mesmo que eu vim cá. Tio Maneco não quer o nosso casamento. Pois então nós fugimos, Sianinha. — Fugir? Que é isso, Zé-João! — Que é isso? É se você gosta mesmo de mim, Sianinha. Se você gosta, temos que fugir. A moça baixou a cabeça. O munjolo levantava, pesado e tredo, o cravo enorme, enquanto a água se lhe debulhava pela “garganta” e enchia o ambiente de barulho e pinguichas. Sianinha meditava. — Pois tá feito, Zé-João. Eu fujo. Mas não é já. É depois da colheita. — Tanto tempo! — Três meses. Estamos em janeiro… — Tá bão, Sianinha. Eu espero. E num salto, o moço transpôs a porta e perdeu-se no milharal. II Na cidade, o coronel Oliveira, chefe político e presidente da Câmara, explicava os motivos da inimizade que separava as duas famílias. É verdade que ninguém dava tento à língua viperina do coronel, cujo prestigio residia mesmo na habilidade com que manejava as intrigas e as mentiras. Uma inteligência viva substituindo com vantagem o alfabeto e posta a serviço de um mau caráter. — Pois, acreditem, afirmava o coronel, alisando o bigode preto aparado, acreditem. Eles não se podem gostar. — Mas, são sérios mesmo os motivos? perguntou o Teotônio Silva, tabelião, esfregando as mãos. E o coronel lambendo as gengivas desdentadas pela piorreia, desfiou a história daquela divergência familiar. — Como vocês sabem, são irmãs as mães de Zé-João e Sianinha. Mas, o parentesco não impede que lavre entre os maridos um ódio feroz. Um ódio tenaz e velho. Se se encontram numa curva da estrada, metem-se pelo mato a dentro evitando os mesmos rastros… Um horror! E sabem desde quando vem semelhante ódio? Os ouvintes aproximaram-se e o coronel, refestelado, bambaleando as pernas tortas, continuou: — Desde a noite do casamento… — Desde a noite do casamento? inquiriu, curioso, o José Guido, agente do Banco de Itaboca… — É verdade, desde a noite do casamento. Foi assim: eram duas irmãs: Maria Luiza, clara, cabelo cor de palha e olhos azuis, e Maria Luzia, moreninha, faceira, de cabeleira preta e olhos cor de azeviche. Chico Pedro enlevou-se pela cabeleira amarela de Maria Luiza, e Maneco da Silva pelos olhos negros de Maria Luzia. Foi um noivado demorado e gostoso. E afinal combinaram de casar-se no mesmo dia. Dito e feito. Casaram-se. Festança. Foguetório. Comezaina. Catira até alta noite. Finalmente, vão dormir cada qual no seu quarto. No dia seguinte, o sol alegre e claro, entrando cedo pelas frinchas das janelas e pelos desvãos do telhado, pregou um formidável logro aos noivos. — Um logro! Ora essa! — Pois não foi? Os noivos à hora de deitar-se trocaram os quartos, e só no dia seguinte descobriram: Maria Luiza, clara e loira, estava com o marido de Maria Luzia, a morena de cabelos pretos. E começou daí a inimizade daquela gente. Todos sabiam, no entanto, que aquela não era a causa da animosidade. Ao contrário. Atribuía-se ao coronel Oliveira o incremento da divergência. Uma questão de terras dera origem à pendência. Chico Pedro e Maneco da Silva, demarcando as divisas de seus sítios, armaram rixa por uma nesga de terreno noruega. Chico Pedro veio depressa à cidade consultar o compadre Oliveira, que era, para a gente do mato, jurisconsulto e conselheiro. — Fique firme, compadre. Não arrede a cerca, aconselhou o coronel. — Mas, compadre, o home teima em derrubar o mato. Que é que eu faço? — Não deixe, uei. Finque o pé. O dereito é seu. Não arrede a cerca. Certo de que a razão realmente pendia para seu lado, Chico Pedro pôs mais dois fios de arame farpado na cerca divisória. Maneco da Silva, por outro lado, não se conformou com a teimosia do concunhado. E veio também bater às portas do coronel. — Como é, seu coronel, o Chico Pedro está me tomando um naco de terra. Que é que eu faço? — Ora, seu Maneco. Pois vancê não deixe. Finque o pé. — Mas é que o Chico Pedro já pôs cerca de arame. — Pois arranque a cerca e ponha no lugar certo, uei. O dereito é seu. E a cerca alta noite foi abaixo. Começou daí a rixa das duas famílias tão ligadas pelo parentesco.

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Ao coronel não interessava a compra de um dos sítios, como alguém pensava. Só lhe apetecia armar a cizânia. Só isso. As rendas da Câmara lhe davam de sobra para manter a casa farta e encher as gavetas de dinheiro. Naquele caso, como em todos os casos semelhantes, o coronel Oliveira dava arras ao seu instinto de intrigante maldoso. Aquilo lhe era um gozo, um prazer espiritual…

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Mas, à proporção que as duas famílias, acirradas pelo famigerado magnata da política, se distanciavam pelo ódio, Zé-João e Sianinha aproximavam-se pelo amor. III Passou a colheita. Ia alto o catira. À luz mortiça do lampião de querosene, os folgazões sapateavam e desferiam nas violas enastradas cantigas simples e sentimentais. Um cheiro pesado de suor e fumo enchia o ambiente. Caboclos de tez queimada pela canícula, encostados nos portais e nas paredes nuas de reboco, deitavam olhares cobiçosos às tímidas namoradas… Acocorados nos cantos, roceiros taludos soltavam pelas narinas grossas baforadas de fumaça e enchiam os violeiros de ditos picarescos… Zé-João ansiado procurava Sianinha. Madrugava quando, de fora, conseguiu vê-la pela janela tosca. E foi aí, sob o olhar vigilante da lua, que concertaram, afinal, o plano de fuga. — Está firme, Sianinha? — Feito, Zé-João. — Que dia, então? Sianinha refletiu um pouco. — Hoje é terça. sexta-feira, na casinha do munjolo, ao meio-dia. — Feito. E apertando a mão da moça: — Havemos de ser felizes, se Deus quiser. IV Sexta-feira. Zé-João não conseguiu convencer seu pai da inconveniência de um recurso às autoridades. E Chico Pedro vem, de novo, bater às portas do coronel Oliveira, acompanhado do rábula Silva Tostes. — Não hai dúvia compadre. O dereito é seu. Vancê arrequera, uei. Nessa hora, a chicana entrou em cena pela mão do leguleio. E o coronel lançou, entre rabiscos e garranchos, o malsinado despacho incumbindo o vereador Astolfo F. da Silveira de proceder à vistoria por parte da Câmara Municipal.

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Ciente do início da lide, Maneco da Silva, por seu turno, abandona o eito e apresenta-se, conturbado, em casa do coronel, no firme propósito de defender de unhas e dentes a posse de sua propriedade. — Não hai dúvida, seu Maneco. Pois vancê também arrequera. Não fora preciso requerimento. O processo iniciado já era uma aberração, simples manejo daquele homem a quem os paredros da zona, na certeza da subserviência, entregavam a direção de um povo generoso e bom. V Ia consumar-se para os dois condôminos a velha pendência. Assim acreditavam Chico Pedro, estribado no compadrio político, e Maneco da Silva, ciente de que a palavra do coronel Oliveira, em última análise, penderia a seu favor. Ambos, afinal, acreditavam que lhes caberia, pelo laudo arbitral, o cobiçado trato de terras. — Afinal de contas, se para isso não vale o compadre Oliveira, por que é ele padrinho de Zé-João, refletia Chico Pedro. Por outro lado, pensava Maneco da Silva: — Seu coronel me aconselhou derrubasse a cerca, decerto que ele sustenta agora, uei… E postos à frente da caravana, ao lado do vereador e do coronel Oliveira, antegozavam os contendores o triunfo dos seus apetites. — Ora, meditava Chico Pedro, goste ou não goste Zé-João, a divisa tem que ser desmarcada a meu favor. Marchavam assim, mudos, entabulando consigo mesmos animada conversa, discutindo cada qual a valia dos seus direitos. —Pronto, seu Astolfo. É aqui. Um carreador aberto na mata cruzava aí a estrada vicinal. Lado a lado, empinava-se a vegetação agreste, em torno da qual desenvolvia-se a velha contenda. O machado dos condôminos respeitava o terreno contestado, e a mataria abria-se em fronde espessa, enastrava-se, marcando a vitória da natureza sobre a teimosia dos homens. A caravana desmonta-se para iniciar aí a primeira prova da vistoria. De uma touceira de gravatá emergem então, ternamente abraçados, Zé-João e Sianinha. A surpresa põe aquela gente estarrecida e silenciosa. Uma sensação de angústia reponta depois na fisionomia de cada um. Vai ter início, parece, um drama novo. Maneco da Silva e Chico Pedro, pálidos e constrangidos, escancaram os olhos diante daquele quadro que a simplicidade encantadora da paisagem revestia de impressionante beleza. O velho ódio de família começa a arder nas veias. Não chega, porém, a aflorar-lhes no gesto e na voz. — Tio Maneco — diz Zé-João, pondo-se diante da caravana — o senhor está sendo enganado por esse homem impiedoso. Foi o coronel Oliveira quem aconselhou meu pai tratar advogado contra o senhor. Fique sabendo! — Tio Chico Pedro — acrescenta Sianinha — sabe quem mandou meu pai derrubar a cerca? Foi esse homem, também… Uma nesga de sol, coado entre a fronde do arvoredo, retrata no chão vermelho da clareira o vulto dos jovens, mãos dadas, esbeltos e serenos castigando com a verdade a atitude daquele magnata da política. Chico Pedro e Maneco da Silva entreolham-se surpresos e fincam os olhos na figura ridícula do coronel. — É mentira, meu pai? indaga Zé-João. E voltando-se para Maneco da Silva: — Sianinha falou verdade, meu tio? O silêncio constrangedor dos dois adversários faz dramática aquela situação. — O senhor é o único culpado, seu coronel, afirma energicamente a moça. Desmascarado, o empreiteiro da desarmonia não sabe que dizer. Alisa os bigodes aparados, lambe as gengivas devastadas pela piorreia e torce nas mãos grossas e peludas a brida do animal. Um riso alvar paira-lhe nos lábios. — Mas, se não fosse isso, que é que os devogados fazia? E voltando-se para o vereador: — Aonde é que já se viu político ter palavra?

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O vereador Astolfo F. da Silva, sensato, soube decidir a contenda. Ali mesmo, na clareira banhada pelo sol a pino, fincou-se a estaca da casinha em que Zé-João e Sianinha armariam, no terreno contestado, o lar destinado a constituir dentro em pouco o traço de união entre as duas famílias, de novo ligadas pela amizade. ?

O preço da liberdade

O anúncio era simples. Dizia assim: “Homem idoso, gozando de boa saúde, honesto, rico, deseja encontrar mulher moça com quem possa casar-se. Carta para a Caixa Postal, 227.” Josefina pôs os olhos no chão, mergulhada em cismas. — Sério, honesto, rico… Afinal de contas — murmurou — mais vale um velho sério, honesto e rico que a vida que levo sob o guante de dona Felipa. Pior que madrasta, nem o diabo! Revirou o jornal, pensativa, procurando talvez uma explicação mais clara para aquele anúncio. Finalmente, recortou-o e meteu-o na bolsa.

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No dia seguinte, foi pôr esta carta no correio: “Senhor, Candidato-me à sua companhia. Se é sério e honesto, pouco me importa a sua idade. Sou séria e honesta. Isto lhe bastará e nos bastará para uma vida calma. Devo-lhe, porém, esta explicação: aceito a sua companhia porque não quero sofrer mais. Se é sério e honesto, e se está disposto a dar-me paz e relativa felicidade, responda-me pelo mesmo jornal. — J. V. T.”

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Foi pontual. À hora marcada, levemente pálida, levemente trêmula, batia à porta do escritório. — Entre! Veio de dentro uma voz forte. Josefina torceu o trinco e empurrou a porta. Parou, contrafeita: — Perdão, senhor. Enganei-me. Procuro o 217… — Perfeitamente, senhorinha. Este é o 217… — Não é possível! — É possível. Tenho um recado para lhe dar. O cavalheiro que a senhorinha procura foi chamado a negócio urgente. Pede-lhe que o espere por alguns momentos. E o moço, inclinando-se ligeiramente, indicou-lhe o amplo divã, convidando-a a assentar-se. Aturdida pelo inesperado encontro, Josefina permaneceu alguns instantes de pé, indecisa. Depois, mais calma, sentou-se. O moço voltou à mesa de trabalho e recomeçou a martelar a máquina de escrever. Enquanto isso, Josefina, recobrando a calma, examinava a casa com jeito simples. Esquadrinhando o recinto, analisando os móveis e o ambiente, a moça descansou os olhos sobre o rapaz que trabalhava ativamente. Era um moço claro, aloirado, olhos azuis, basta cabeleira e rosto rapado. Elegante. Mais conformada, dirige-se ao moço: — Voltará logo o senhor… — Doutor Guimarães, rematou o rapaz. Sim, senhorinha, deve voltar. Assim me afirmou. Depois de um pequeno silêncio, a moça perguntou: — Dr. Guimarães de quê? — Dr. Joaquim Pedroso Guimarães, engenheiro, uma das maiores fortunas da Capital, completou o moço, com ênfase. — Ah! — Não o conhece, senhorinha? — Não. Disseram-me que é idoso, disse Josefina, com certa indiferença. — É verdade, confirmou o moço. Cinquenta e oito anos, mas é forte e tem boa saúde. — É? Perguntou a moça, despreocupadamente. — Uma saúde invejável. Não morrerá tão cedo… A moça deitou no jovem um olhar desconfiado. Fez-se demorado silêncio. Depois, um pouco preocupada: — Gosta do dr. Guimarães? — Oh! Muito, senhorinha. Ótima pessoa. A moça descansou-se sobre o divã, cruzou as pernas e cerrou ligeiramente as pálpebras. A máquina estridulava nas tiras de papel, onde os dedos do moço punham, talvez, uma carta de amor… O tempo passava. Josefina, impacientando-se, consultava o minúsculo relógio-pulseira. Folheava revistas e jornais… — Senhor, há mais de uma hora que espero. Certamente, isso não é delicado… O rapaz veio depressa assentar-se ao lado da moça: — Senhorinha… — Perfeitamente. Sei que o senhor não é culpado. Mas, o dr. Guimarães… — Negócios, senhorinha, negócios. Por vontade própria, garanto-lhe, o dr. Guimarães não cometeria a indelicadeza de fazê-la esperar tanto tempo. Garanto-lhe… — Bem, exclamou a moça, folheando uma revista. Até que horas costuma o dr. Guimarães ficar no escritório? — Até as quatro e meia. — Mas, são cinco horas! Fez-se silêncio. — Quem sabe, senhorinha, eu possa satisfazer os seus desejos junto do dr. Guimarães… — Oh! Não,protestou a moça. São negócios particulares… E envolvendo o moço num longo olhar: — Só com ele, mesmo. — Se fosse possível, poupá-la desse contratempo… A moça baixou os olhos e pôs-se, absorta, a bater levemente o tacão dos sapatos. — Agradecida, senhor. Muito agradecida… Depois, como que tomando uma resolução: — Se o dr. Guimarães perguntar por mim, diga-lhe que tomei nova resolução… O moço, levantando-se também, inclinou a cabeça em sinal de assentimento. — Às ordens, senhorinha. — Boa tarde.

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No dia seguinte, Josefina lia no jornal o seguinte recado: “J. V. T. — Um desastre de automóvel impediu-me de recebê-la ontem. Estou disposto a cumprir o anunciado sem mais condições. Às 20h esperá-la-ei à porta da Matriz de S. Lucas. Baratinha azul, n. 5723” Punha-se-lhe diante dos passos o dilema que ela própria procurara. Cansada de sofrer física e moralmente; saturada dos aleives e doestos da madrasta; amargurada pela passividade quase criminosa do pai, sem que ninguém a aconselhasse, que minorasse a sua infelicidade, Josefina estava de fato disposta a quebrar violentamente as algemas da prisão e do sofrimento. Não lhe era dado frequentar a sociedade, e só sentia a vida social sob a tutela da madrasta. — Como, pois, conseguir pelo casamento, a conquista da liberdade! Nunca! Decididamente, aquele anúncio de jornal fora o despertar de uma energia desconhecida e fora o germe da revolta. — Ah! Mil vezes o sarcasmo de um casamento assim de que tamanho e tão constante sofrimento! E por longo tempo a moça reviveu a sua vida de amarguras, como que pedindo à lembrança incentivo e força para a resolução suprema. E pensava: — Velho, sério, honesto. Cinquenta e oito anos. Boa saúde. Rico. Talvez o conforto, talvez a felicidade… E numa derradeira justificativa: — Também, não sofrerei mais do que estou sofrendo…

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Vinte horas. Os fiéis retiram-se da igreja. A luz frouxa da iluminação faz escura a sombra das árvores, no adro do templo. Entre a fila de automóveis, postada ao pé da escada larga, junto à sarjeta, Josefina encontrou logo a baratinha azul: — É o número 5723? — Sim, senhorinha. Surpresa, pergunta ainda: — É o secretário do dr. Guimarães? — Perfeitamente, senhorinha. E o moço, abrindo a porta do carro: — Queira entrar. — Mas eu esperava o dr. Guimarães… — Sim. Ele incumbiu-me de entregar-lhe esta carta e levá-la à sua presença, de acordo com o combinado. Josefina parou. Refletiu, contrariada. Finalmente, entrou no carro e fechou a porta. O moço, rápido, imprimiu movimento ao motor e partiram. — Prefiro que a senhorinha leia a carta, disse o moço em tom alegre. — Perfeitamente, senhor. E rasgando o invólucro, leu: “Senhorinha, Perdoe o meu caturrismo. Vivo à procura de felicidade. Como é bom tê-la nas mãos! Ponho junto desta carta um cheque ao portador. Aceite para esposo o jovem que tem a seu lado. Seja feliz. (a.) Dr. Guimarães.”

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E a baratinha azul varava a noite escura em busca da felicidade…

A revelação

Viera diretamente para a casa de dona Josefina de Alencar. Velhos conhecimentos de família. Além da carta de bacharel em letras e de uma história complicada com certa viúva moça, trouxera uma bolsa recheada de dinheiro. Acompanhando-o, pelo correio, uma carta dos senhores Carvalho Guedes & Cia., altos comerciantes da praça, dava-lhe recomendações carinhosas e credenciais financeiras. A fortuna avantajada do pai, o coronel Valenciano de Rezende, célebre fazendeiro da Mata, protetor contumaz de jagunços e cangaceiros, propiciava ao jovem estudante uma vida folgada e confortável. Mas, se os bens de fortuna lhe armavam a vida de tantos cabedais para o savoir-vivre, o lastro sentimental, por uma contradição atávica, punha-o restrito aos afazeres do estudo e ao severo recolhimento da casa em que morava. De fato. Paulo repartia com cuidado a polpuda mesada paterna entre livros de medicina e literatura e, raramente, em sessões de teatro e cinema. Era mesmo uma vida sóbria e quieta, sem sovinice e sem preguiça. De vez em quando, caracterizando o sentimentalismo inato, repartia as sobras da mesada entre os desfavorecidos de fortuna e, com simplicidade vicentina, sossegava nos casebres e cafuas, os pobres e doentes. Era essa a religião que alimentava, religião que lhe viera do berço através dos exemplos de amor e bondade de sua mãe. Uma existência assim, que a muitos parecia morna e inútil, teria que encontrar simpatias na casa patriarcal que a abrigava. E foi o que se deu.

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A lembrança da viúva moça, que ficara na cidade natal, esvaía-se-lhe a pouco e pouco. Aquela história, repassada de decepções e tristeza, começara inocentemente, na meninice, por uma afeição toda fraternal. Mais tarde, com a eclosão da puberdade, a experiência da moça acirrara-lhe as tentações da idade, e então se entregara aos carinhos lúbricos da encantadora viuvinha, inteiramente à mercê dos instintos prematuramente despertos. A austeridade do pai, no entanto, quebrara-lhe logo o idílio impudente, e Paulo se vira, entre lágrimas e doestos, internado num colégio religioso. A lembrança desse lance de sua vida concorrera talvez para o recolhimento que levava, mas perdia-se aos poucos na convivência com Inês, a formosa filha de dona Josefina de Alencar. O caráter de Paulo de Rezende encontrou semelhança no de Inês de Alencar: modesta e simples, tinha a emoldurar-lhe a beleza física requintados dotes de inteligência. Não mantinha largas relações sociais. Dona Josefina de Alencar limitava o círculo de suas amizades ao convívio dos parentes e de alguns afeiçoados do falecido esposo. As poucas vezes que os seus salões se abriam para as recepções mundanas era à custa do assédio impertinente do filho, também estudante. A vida social, tumultuosa e absorvente, não atraía Inês, possivelmente por força da idiossincrasia materna. E aquele lar se mantinha simples, modesto, sossegado e — através da música que os dedos de Inês sabiam interpretar — cheio de alegria e felicidade. Esse ambiente acirrou em Paulo o sentimentalismo que lhe viera do berço, como herança preciosa da mãe; e Inês ia entrando vagarosamente para sua alma ao passo que dela ia esvaindo a lembrança da voluptuosa viúva. Nascido assim sob um teto cheio de pureza e suavidade, aquele amor teria que crescer na alma sensível de Paulo e encher-lhe todos os âmbitos da existência. E o moço viveu para o amor…

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Viveu para o amor que era, na forma e na essência, diferente daquele primeiro amor contraído nas vésperas da mocidade. Era puro como a pureza da mulher que o inspirara. Nunca sentira no olhar de Inês a hipnose erótica da bela viuvinha, e nem lhe amargara nunca o pensamento a sombra de um desejo impuro. E, senhor do coração da moça, também dela nunca duvidara. Mesmo os colóquios familiares de Inês com o primo Otávio não lhe punham dúvida na intensidade do amor. É que Otávio de Alencar, mais artista do que ele, entendia e interpretava Lizst e Chopin, razão por que se fizera admirador da virtuosidade da moça. Que importava se ficassem eles, os primos, às vezes, na penumbra da sala, discutindo e tocando sonatas sentimentais de Beethoven! A sua afeição pura e sincera não concebia que Inês pudesse tornar-se indigna de seu amor. É certo que um dia se lhe anuviou o pensamento: foi quando Inês e Otávio, contrafeitos e ruborizados, saíam debaixo de uma umbela verde de trepadeiras… Mas, tão depressa Inês, com o sorriso na ponta dos lábios, lhe contou a história de um réptil venenoso escondido na relva do canteiro, desapareceu-lhe prontamente a dúvida e a alegria inundou-lhe a alma. E assim passou, suave e doce, todo o noivado.

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Concluído o curso médico, realizou-se o casamento. E os jovens, embalados pela felicidade conquistada, encheram-se de outras ambições. Dias depois, partiram em busca dos sertões paulistas. Num recanto silvestre, recuado da civilização, assentaram os alicerces de uma vida nova. Diante da natureza exubere e bruta, num meio cosmopolita, os recém-casados mais estreitaram os laços da afeição. Sentiam-se isolados entre os elementos alienígenas que os cercavam. E a atração que os unira no amor tornara-se naquele meio uma força irresistível. Suas almas, trabalhadas pela sensação de isolamento e pela impressão sugestiva da paisagem, faziam-se cada vez mais unidas.

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O tempo passava para Paulo e Inês na mesma intensidade de afetos e emoções. E no momento em que um pequenino ser estava para vir construir um novo traço de união entre eles, Paulo enchia-se de respeito e veneração pela companheira de seus sonhos e lutas. Tremia mesmo pela hora decisiva em que, como médico, teria que acompanhar as incertezas da délivrance. Figurava na imaginação a cena dolorosa que assistiria, e um secreto enleio, misto de terror e desejo, o enervava profundamente. — Mas, pensava conformado, esse dia há de chegar.

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E chegou. Noite alta. Longe, o eco dos cantos dos galos. Paulo e Inês sós. Ela, tímida e pálida, espera angustiada o fruto querido dos seus amores. Na penumbra, Paulo, retemperado pela consciência dos deveres profissionais, acompanha o desdobrar e a evolução do processo fisiológico. Calmo, perde a personalidade de esposo. As agruras da longa expectativa configuram-se-lhe na confiança absoluta de sua técnica. Contempla o rosto da mulher querida com os olhos da ciência, que veem somente os sinais da hora amarga que se aproxima. Surdo à dor, aos trismos e aos queixumes, prepara com cuidado o arsenal que trará para a luz dos seus olhos de obstetra um novo rebento da humanidade. Mas a pouco e pouco, em cada minuto que passa, em cada gemido que explui, o amor intenso, profundo, que o prende a Inês, abre-lhe na alma um sulco doloroso. Acorda-lhe sensações estranhas. É dó e é piedade. É a identificação dos sentimentos afetivos com a dor e a aflição da mulher amada. E sofre com ela. A sensação de isolamento aguça-lhe o padecimento. Ninguém que o conforte e o aconselhe. Ninguém! Lá fora, a natureza, a ignorância e o estrangeiro… Só! Treme, então. Esmorecem-se-lhe as forças. Conturbam-se-lhe os pensamentos. Zumbem-lhe os ouvidos. Um torpor, um enlanguecimento põem-no prostrado ao pé da cama, olhos desmesuradamente abertos, respiração frouxa, imóvel quieto… Fora, madrugada que se aproxima. Pios agudos de aves noturnas. Farfalhar de árvores ramalhudas.

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Paulo acorda do letargo. Tem no olhar o brilho inopinado da resolução. Levantava-se. Vai direito ao consultório. Tira da maleta a empola volumosa do clorofórmio. À guisa de máscara, sobre tela de gaze, uma camada leve de algodão. Tudo pronto. E o esposo feito médico, certo de sua perícia e dos recursos da ciência, quer minorar pelo anestésico o sofrimento da esposa e apressar o desenlace do drama. Gota a gota, cuidadosamente, sobre a máscara improvisada, certo, seguro, resoluto, experimenta a anestesia. E o veneno invade a pouco e pouco o organismo débil da jovem. Ligeira sufocação. Tosse. Calma. Insensibilidade sensorial. Depois, agitação, movimentos contínuos, pulso e respiração acelerados. Loquacidade. Ao começo, palavras ininteligíveis, desordenadas. Em seguida, frases soltas, compreensíveis, quebram o silêncio da casa: — Não, Otávio, não me beijes. Deixa-me, deixa-me… Paulo estremece. Uma ruga vinca-lhe a fronte. Abre os olhos e fita o rosto inânime da esposa. — Basta! Não me apertes… E nítidas, claras, sonoras, precisas, as palavras vêm-lhe aos borbotões por entre os lábios convulsos da esposa anestesiada. Ressoam lúgubres na taciturna solidão do quarto. Paulo, agoniado, gotejando suor, compassa as instilações venenosas, dilatando a fase alucinatória da cloroformização. Conturbado, debruça-se sobre o corpo da mulher querida, na ânsia de apanhar bem certas asa palavras e o sentido das frases. — Sim, Otávio. O filho é teu, bem o sabes. Não é dele, não é… Paulo pensa. Reflete. É uma história inteira que lhe vem à lembrança. Toda a sua vida, num átomo, numa corrida vertiginosa, passa-lhe pela memória. — Será possível que essa revelação seja apenas o delírio próprio do anestésico? Será possível? E na aparente indiferença do jovem médico, no olhar vago, incerto, errático, vai uma tremenda tragédia espiritual. — Será possível, Deus dos céus? Será possível? E a imaginação ardente, exacerbada do moço ajusta coincidências do seu passado, conserta episódios do seu noivado, analisa fatos de sua vida. A dúvida, uma quase certeza mesmo, ferrotoa-lhe a consciência. — Sim. As sonatas de Beethoven na penumbra da sala. Aquele réptil escondido na relva do canteiro. E outros episódios encheram logo as suas reflexões. Não havia dúvida, Inês o traíra. As coincidências se ajustavam às revelações do delírio.] — Tudo, uma dolorosa realidade! E uma luta tremenda trava-se no espírito do jovem médico. A perversidade paterna desperta-lhe instintos novos. Uma cólera surda reclama-lhe vingança. Arde em febre. Olhos injetados. Fronte engelhada. A mulher que o traíra ali estava inerte, insensibilizada para o seu ódio. Prolongasse mais a ação do anestésico, vertesse mais na máscara o líquido precioso, e a pena inexorável justiçaria a criminosa e, com ela, o fruto dos seus amores ilícitos. O silêncio e a solidão seriam os comparsas da tragédia. Somente. E tudo se reduziria a um acidente comum em casos daquela natureza. A mão firme do médico, então, estende para a máscara a ampola gotejante do anestésico. Mas, subitamente, a voz da consciência, a herança materna, sentimental e boa, põe-lhe um travo amargo nos pensamentos letais. Se a mãe, porventura, merecia pena capital, o pequenino ser, que estava prestes a vir ao mundo, certo, não cometera crime. Por que havia de retribuir com um crime a prática de outro crime? Se Inês se tornara criminosa, cabia-lhe também tornar-se criminoso? — Ah! — gritam-lhe na alma instintos redivivos — certamente que não! E rápido, Paulo depõe sobre a mesinha da cabeceira o frasco venenoso, retira depressa a máscara do rosto da esposa e, como que automatizado, embebido de uma resolução extrema, toma o arsenal cirúrgico que aí está pronto, asseptizado, — e logo o vagido do recém-nascido quebra o silêncio da casa solitária. Pronto! Mãe e filho estão salvos. O processo fisiológico está completo. O pequenino ser, cheio de vida, toma lugar sob o dossel rendado do berço fofo. A mãe experimenta a cessação gradual dos fenômenos tóxicos. Nesse momento, o médico cede lugar ao esposo. E Paulo, calmo, sossegado, firme, troca o avental pelo paletó. Apanha a maleta. Sai. Fora, os primeiros alvores da madrugada tingem de oiro a fronde das árvores. Trabalhadores de enxada e alfanje cantarolam pelas estradas alegres endeixas de amor… Paulo retira da garagem o automóvel, deita nela a maleta e a mala de roupas e, solerte, impulsiona o motor. Parte!

Um homem impassível

I Na realidade, José Sintra do Reno levava uma vida de cenobita. Não punha pé fora de casa e nem lhe interessava a vida algo movimentada da cidade. Meses e anos desfiavam-se-lhe, sonolentos e calmos, marcando-lhe a passagem, apenas, nas rugas que lhe iam vincando a face morena e na cabeleira que se tornava rala e grisalha. É possível que a curiosidade pelas coisas da vida tivesse nele diuturna e discreta satisfação. É possível. O cômodo, tresandando bolor, em que seus pais outrora vendiam bananas e cerveja barata, estava agora feito agência do correio. E José do Reno, atrás de uma grade tosca de madeira e tela de arame, embebia-se a ler e reler a ruma de jornais extraviados que ele cuidadosamente empilhava sob o balcão. Óculos esgarranchados no nariz, espichava-se molemente numa cadeira de abrir e fechar, produto da indústria local, acompanhando dali, como o heliotrópio, a caminhada diária do sol. Logo que a tarde caía, o pequeno cômodo não comportava a massa humana que, ansiosa e palradora, esperava a chegada do estafeta condutor das malas postais. Detrás das grades, José do Reno, fingindo indiferença, mudo e quieto, tomava tento das novidades e bisbilhotices da vida local. Sossegado, só de raro em raro levantava os olhos para os seus interlocutores, e nenhum sinal de riso lhe aflorava os lábios se este ou aquele conquistava uma gargalhada coletiva, mercê de anedota picante ou bem-humorada. Mas o estafeta descarregava a alimária e empoeirado depunha sobre o balcão as malas postais — José do Reno se transfigurava, e o rosto moreno adquiria um tonus diferente, incompatível com a serenidade anterior. Aviventava-se-lhe o olhar sob os óculos grossos, e os movimentos tardos eram substituídos por uma vivacidade intensa. Os psicólogos, decerto, descobririam nessa brusca modificação de atitude indício de uma tara ou de uma vida interior bem recalcada. Talvez fosse. José do Reno sabia como ninguém esconder o vício da curiosidade. Os olhos desciam pelas colunas do jornal aberto, mas os ouvidos apurados apanhavam como um receptor perfeitíssimo a algaravia da multidão palradora… II Dizia-se que José Sintra do Reno tinha na vida um caso escabroso. O disse me disse das cidades pequenas dava, ano por ano, maior vulto ao episódio já longínquo, perdido no tempo, mas sempre presente na memória dos tagarelas. Na realidade, fora um caso à toa, banal mesmo. José do Reno amara um dia. A impassibilidade inata caíra vencida pela pertinácia de uma mulher, como caem todos os mortais. Não fora, é certo, uma queda momentânea. Proviera de um hábito inocente. Após o jantar, José do Reno, rapaz de vinte anos, enfarpelava-se modestamente, descia pela rua da Palha e galgava, passo a passo, o Alto da Cruz. — Ia fazer o quilo, explicava. Nem todos, entanto, acreditavam na explicação. Marijosé, por exemplo, entendia que o moço empertigado escondia sob a máscara do passeio higiênico um motivo sentimental. E com igual pontualidade, calejava os cotovelos no peitoril da janela, olhos espichados para o beco do Zé Folheiro, onde então repontava a cara enfarruscada do provável namorado… De começo, José do Reno não percebeu os olhares langorosos que a moça romântica lhe desferia. Como o passar dos tempos, ainda sem segundas intenções, passou a cumprimentá-la com leve toque no chapéu. Depois, como velhos conhecidos, já murmurava um cerimonioso: — Boa tarde! Foram meses a fio, talvez ano mesmo, sem que a inteligência de José do Reno assimilasse as blandícias amorosas da bonita moça. Mas — água mole em pedra dura — a pouco e pouco a insensibilidade do rapaz foi se derreando diante de qualquer coisa estranha que lhe estuava no coração. Ele mesmo, talvez, não pudesse explicar. Um quê de alegria e tristeza, uma sensação de insopitável angústia, uma ânsia incoercível de passar e repassar pela rua da Palha, de sentir nos seus os olhos castanhos daquela menina, de vê-la sobre o peitoril da janela, quieta e ensimesmada. Era essa, sem dúvida, a vida interior de José do Reno. Mas, descendo passo a passo, calmamente, a rua da Palha, ninguém descobriria isso: era a imagem viva da impassibilidade. Quem o tivesse visto, anos anteriores, palmilhando a mesma rota, medindo com o tacão do sapato, duas vezes por dia, indo e vindo, aquela mesma rua, nenhum sinal perceberia de diferença interior. A própria indumentária sóbria e rostida participava do conservantismo do dono. Mas, José Sintra do Reno amou de verdade. Amou como quem ama dentro de uma clausura, que era, sem dúvida, aquela frieza imensa. Marijosé, suspicaz como todas as mulheres, adivinhou a vida introspectiva do sisudo enamorado. Adivinhou e derrengou-se em atrativos. Redobrou a doçura do olhar, e emoldurada pela janela clara, em cujas vidraças a luz crepuscular deitava revérberos doirados, pôs na atitude costumeira um tom de simplicidade e tristeza. Inteligente e astuta, soube depois armara teia caprichosa dentro da qual o jovem apaixonado se emaranharia tonto e vencido: — quebrou a pontualidade diuturna e, quando em quando, o retângulo da janela permanecia vazio como um aro sem espelho… Aquelas alternativas de vê-la e não vê-la, em breve incandesceram a alma bisonha do rapaz, e ele foi, enleado, bater às portas do João Gato: — Quero que o senhor vá pedir casamento pra mim… E acrescentou logo: — É a Marijosé do seu Juca Silva. João Gato, embaixador casamenteiro acreditado em todas as cortes amorosas da cidade de Rio das Antas, em dois tempos obteve o consentimento dos pais da moça, e José do Reno iniciou então as novenas da praxe. Foram dez longos meses de atro sofrimento para a infeliz família. Porque a impassibilidade exterior do noivo encontrava semelhança na sua nenhuma loquacidade. Das sete às onze da noite, José do Reno, diante da noiva, limitava-se a raros monossílabos… Mobilizava-se o pessoal da casa para o incremento da conversação, mas — qual! — esgotavam-se os assuntos sem que o noivo taciturno deixasse o vezo de ouvir e calar. Café com bolinhos açucarados seguido de estralejar de sal no fogão e vassoura de fibras voltadas para cima — nada disso lhe incitava a retirada. Ao cabo de contas, José do Reno via-se compelido a pôr termo à visita da noite, porque, um a um, os membros da família se retiravam para o leito…

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Casado, José Sintra do Reno perdeu, é claro, o hábito da caminhada ao longo da rua da Palha e Marijosé trocou o peitoril da janela pela máquina Singer. E a lua de mel insípida seria o prelúdio de uma vida conjugal incolor e desenxabida. O ambiente do lar retratava bem o caráter do chefe. — Uma pasmaceira, resmungava a jovem esposa. E era isso mesmo. José do Reno andava de déu em déu atrás do meio de vida, no exercício de sua profissão. — Guarda-livros a prestações, dizia a esposa… E enquanto ele, em casa, ficava horas a fio às voltas com o Diário e a Razão, ela pedalava a máquina Singer. A bobina ia esvaziando o carretel e o fio da linha sumia nas ensanchas da costura — mas outro fio se ia enovelando, caprichosamente, na imaginação da moça. Aracné, decerto, não teceria melhor… A esterilidade conjugal ia entristecer, ainda mais, o ambiente sossegado e tredo daquela casa.

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Nunca chegaram aos ouvidos de José Sintra do Reno a tagarelice das comadres e as conversinhas maliciosas desfiadas à porta das boticas. Nunca! Dia a dia, entanto, alastravam-se os comentários e as línguas compridas levavam de casa em casa o nome de Marijosé envolto em diz-que diz-ques maliciosos… Aracné continuaria a tecer o fio perigoso. Um dia, José do Reno encontrou a casa vazia. Vazia, não: sobre o travesseiro do canto da cama um bilhete frio e lacônico representava-lhe tudo. A moça encontrara, de fato, nos braços do caixeirinho da esquina, a vivacidade e o ardor que sua mocidade exigia. — Também, comentavam à boca pequena, se as carícias conjugais eram regadas com aquela pachorra — quem aguentaria aquilo? Na vida de José do Reno, o incidente ficou nisso, apesar de que a cidade de Rio das Antas, cheia de pundonor, cobriu-se de vergonha. E a política local, por fim, em desagravo, ofereceu ao marido abandonado o importante cargo de agente postal.

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Como se vê, fora, na realidade, um caso à toa, banal mesmo. A língua do povo é que, ano por ano, acrescentava-lhe pormenores e exagerava-lhe as proporções. Tudo acabara bem. Marijosé vivera algum tempo ao lado do amante, que, afinal, encontrara melhor colocação num casamento de verdade. Abandonada, a moça iniciou vida nova: recatada e sóbria. A máquina Singer trabalhava dia e noite. José do Reno, por outro lado, integrara-se bem na vida burocrática. A passagem do calendário marcara-lhe os cabelos brancos e a calvície pronunciada. No temperamento e nos hábitos, nenhuma mudança. Sozinho, solitário, identificara-se com a mole de jornais extraviados e retidos. Parecia-lhe até — e a todo mundo também parecia — que o cargo de agente postal fora inventado para os homens sorumbáticos e comodistas… Conversando os jornais e perquirindo o conteúdo das cartas através dos envoltórios, ele encontrava no cargo uma atividade consentânea com o seu caráter… III Os comentários fervilhavam no pequeno cômodo entupido de gente. A grei supersticiosa da cidade de Rio das Antas alarmava-se com o aparecimento de uma assombração. — Você já viu? — Não ainda. Eu não saio de noite… — Xi! Rapaz, se você visse… E com os olhos esbugalhados: — Uma mulher gigante, vestida de branco, com os olhos deste porte… — Cruz, credo! Nossa Senhora! E onde você viu? — Às duas da madrugada, no beco da Câmara. Eu ia à farmácia do Zeca Luiz, sabe? Mas — qual! — o Joãozinho teve de aguentar a dor de dente. — Também eu vi, acrescentava outro. Foi na semana passada. — No beco da Câmara? — É sim, mas lá perto do Chico Rico, quase em frente a casa de dona Marijosé do Reno. E a notícia espalhava-se, recebendo de cada qual um colorido diverso, um pormenor a mais, um jeito diferente. Detrás da tela de arame, José do Reno, escarrapachado na cadeira de abrir e fechar, tinha diante dos óculos um jornal aberto. Ninguém lhe descobriria na serenidade impassível do rosto moreno impressão ou interesse pela narrativa. Dir-se-ia que a leitura do jornal lhe tomava a atenção e lhe absorvia o interesse. O nome da esposa, seguido de seu sobrenome, talvez não lhe soasse aos ouvidos, tantos anos fora de suas cogitações. A rigidez facial e imperturbável quietude fisionômica denunciavam nele um mundo à parte. Acostumado ao vozerio daquela turbamalta, era natural que adquirisse o hábito da inibição… IV Duas horas da madrugada, precisamente. A cidade de Rio das Antas imergia-se na escuridão. Coaxar de rãs, cantos de galos e latidos de cães. Um vulto inteiramente branco surge então na rua do Meio. Dobra a esquina e dirige-se para o beco da Câmara. Outro vulto, vestido de preto, vai também, pé ante pé, sorrateiro, em seguimento. Um e outro apalpam as trevas e experimentam os pés no chão esburacado. Atingida a rua de Baixo, o vulto de branco toma a direita e o outro chegando ao mesmo ponto estaca indeciso. Estaca e perscruta a escuridão. Ora vacilante, ora apressado, apalpa as paredes, aguça os ouvidos e procura devassar o véu negro que envolve tudo. — Ninguém. Depois, resoluto, avança. Pisa cauteloso o passeio empedrado. Arrasta-se mansamente e, por fim, para diante de um portão. Era aí a casa de Marijosé do Reno. Agachado e calmo, espera então. A cidade dorme sossegada. Vaga-lumes riscam de quando em quando a escuridão imensa. Os minutos passam, tardos e lentos, sem que aquele vulto, de cócoras, assinale de leve a sua presença. Dir-se-ia um corpo inanimado barricando a rua. Uma hora depois, o portão abre-se vagaroso e surdo, e entre os portais um vulto feminino, todo de branco, aparece cuidadoso, perquirindo as trevas. Para, atento, com a mão côncava, ampliando o pavilhão auditivo. E depois, devagar, às apalpadelas, ensaia os passos, de retorno, pelo caminho antes percorrido. Ao dobrar a esquina, alguém lhe embarga os passos. — Pare, senão morre! E com voz soturna, encostando-lhe ao peito o revólver reluzente: — Silêncio, ouviu? Silêncio! Trêmulo, o vulto de branco apoia-se à parede e deixa-se examinar. — Pronto! É isso mesmo. Toca a andar agora e se tentar fugir, morre. E com a arma encostada às costas, o vulto de branco é empurrado beco acima, tropeçando nas pedras, escorregando pelos buracos, silencioso e a tremer. Chegados à rua do Meio, o cano do revólver compele ainda o vulto de branco a tomar a esquerda, e como o chão é liso e limpo, caminha depressa. No fim da rua, ao pé do morro, detêm-se diante de uma casa, à direita: — Pare! É aqui! Com a culatra da arma, bate à porta fortemente. A luz de uma vela aparece no topo da escada. — Que é? — Aqui está seu marido, minha senhora, vestido de mulher. — De mulher? — E sabe por quê? E sempre com a arma reluzente e pronta: — Porque ia dormir com minha mulher, sabe?

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O caixeirinho da esquina encontrou também, no dia seguinte, um bilhete lacônico e altivo sobre o travesseiro do canto. Mas a política local não lhe ofereceu, em desagravo, cargo algum… José do Reno, esse sim — Rio das Antas comentava — é um homem às direitas… ?

A vingança do acadêmico Gil Barreto

I Os jornais noticiaram com abundância de comentários a notável experiência. A Gazeta Popular, depois de uma larga apreciação sobre os grandes inventos do século e das mais arrojadas realizações da técnica moderna, dizia isto: “Pois bem, o Sr. Procópio da Silveira propõe-se realizar hoje, no Prado da Moamba, perante engenheiros e jornalistas, as experiências definitivas de um novo meio de locomoção. Trata-se de um aparelho, que, provido de asas e de um minúsculo motor, proporcionará a solução do problema do voo individual.”

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Fez-se a experiência. O aparelho espatifou-se no solo e o inventor foi internado no Hospital com fratura exposta da tíbia e luxação do cotovelo… II Procópio da Silveira nascera mesmo com a bossa da celebridade. Assim pensava o pai e assim acreditavam os vizinhos que o viram, em pequeno, de canivete e serrote, armando munjolos em presépios e levando ao terreiro das galinhas uma vasta rede de água encanada, jeitosamente feita de cilindros de bambu e torneiras de talo de mamoeiro. Cresceu assim. O pai e o mestre-escola incutiram-lhe a confiança de que se tornaria célebre por meio de um invento. Fez-se homem assim. Transformou a casa numa formidável oficina. Por toda parte estavam, numa intricada confusão, as diferentes provas do seu gênio inventivo: materiais de escultura, marcenaria, ferraria, eletricidade… As várias tentativas para resolver muitos dos grandes dilemas da ciência, mormente da mecânica, fracassadas, não lhe abateram o ânimo e mais lhe estugaram, até, a ânsia da celebridade. Ia passando a vida assim, entre um fracasso e novas tentativas. III Ainda no Hospital, nas longas horas de inércia forçada, ressupino sobre o leito. Procópio da Silveira perdia-se em altas lucubrações. Novo invento preocupava-lhe a imaginação e mais acesa lhe ia a ânsia da celebridade. E mal curado do rude traumatismo, faz da oficina uma complicada rede de fios e correntes elétricas. — Se conseguimos trazer, pelo rádio, vozes longínquas; se chegamos a ver, pela televisão, através das grandes distâncias, por que não fundirmos imediatamente essas duas incomensuráveis conquistas da ciência? E acrescentava, sozinho: — A televisão, como o rádio, exige projetor e receptor. Bobagens! Basta um aparelho… Pôs assim o problema e deitou mãos à procura da descoberta… Sonhava com um instrumento portátil em que se visse e ouvisse o interlocutor mesmo colocado além dos mares bravios… — Toda casa — dizia o inventor, em entrevista à imprensa — toda casa terá seu televisiofone. Quer-se saber que faz e diz o Presidente da República? Regula-se o aparelho e limpidamente, clarissimamente, vê-se e ouve-se a mais alta autoridade da Nação, em seu gabinete e em suas audiências. — É a mais avançada conquista da ciência, rematava o jornal…

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Dias depois, um curto-circuito reconduzia Procópio da Silveira ao leito do Hospital e punha em cinzas e escombros a oficina e a velha casa paterna. — Em todo caso, comentava filosoficamente o pai, poderia ter sido pior… E a vida do filho — isso é que não havia dúvida — seria coroada de louros… IV A Academia de Ciências e Letras, após a renúncia do presidente Gil Barreto, tornou-se centro de acesas discussões. O novo presidente, sacudindo a sorna de muitos anos, espicaçava o ânimo dos velhos e acalentava a atividade dos moços. Nem por isso, entretanto, conseguira matar o ceticismo dos que mais olhavam para os juro e propinas do jeton que para o desenvolvimento das letras pátrias. — Pois bem, Sr. Presidente — falava o acadêmico Francisco Madeira — Vossa Excelência que ao assumir a alcandorada curul deste cenáculo augusto nos deu a certeza de que traria para sua gestão um programa inteiramente oposto ao de seu malsinado antecessor, porque mais ajustado a nossas reivindicações; Vossa Excelência que personaliza agora nossa confiança e não trairá, estamos certos, o honroso mandato que lhe cometemos; Vossa Excelência que assumiu a suprema direção desta casa no momento preciso em que se tornava necessária a defesa de nossa imortalidade gloriosa; Vossa Excelência saberá, com seu voto, decidir o empate da votação há pouco realizada, de forma a resguardar as altas responsabilidades da Academia Nacional de Ciências e Letras, a que temos a honra de pertencer. Tremeram sobre os lábios engelhados do Presidente os fios brancos do bigode ralo. — Eu voto pela concessão do primeiro premio ao conto Entre dois maridos, de acordo com o parecer do acadêmico Gil Barreto e assinado pelo pseudônimo de “Florêncio”. — Protesto! — Por que protesta o nobre acadêmico Francisco Madeira? — Porque o conto Entre dois maridos não foi entregue ao exame da Academia. Foi apenas comentado. — Nesse caso, convido o acadêmico Gil Barreto, ex-presidente desta casa, a proceder à leitura do conto. — Perfeitamente. O parecer foi meu e a mim corre o dever de justificá-lo. E o acadêmico paladino do Messianismo, popularmente conhecido por Juca do Sul, leu com ênfase e malícia o conto assinado por Florêncio:

Entre dois maridos =

I

Acin ke o cônsul lhe paçou o aviso de Sua Majestade, o Rei, ezatamente no dia de seu casamento, Nicola pôs-se pronto para partir. — Ece é o meu dever. Kero partir. De nada valeram as lágrimas da jovem esposa. A sua resolução estava tomada. Partiria. — Axarei jeito de conformar-me, dizia, porke a guerra não dá tempo à saudade… Embarcou pelo “Principeça Mafalda”. Xegou são e salvo. Os submarinos alemães paçavam ao largo, sem dar pela majestosa nave. Talvez prefericem o prazer do sangue derramado nas margens do Piave, ao estermínio chocho de naufrágio…

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Enriketa desperdiçou groças lágrimas. Só depois ke o derradeiro novelo de fumaça se perdeu no céu e ke o orizonte escondeu de vez a silhueta elegante do navio ela retornou profundamente triste ao lar deserto. Sozinha, molhou de pranto o travesseiro ke ele deixara sobre a cama larga, tão poucas vezes testemunha das carícias conjugais… Guardou, depois, como preciosas relíquias, o xapeu preto, o terno de casamento e, na parede branca do dormitório, entre guirlandas e flores naturais, o retrato de ambos… E pôs luto… II A guerra terminara. Rumas de voluntários retornam à terra adotiva. Decem cantando e vivando o seu Rei e o noço País. Paçam por Enriketa nos braços das noivas e das mães, das esposas e das irmãs. E ela mais uma vez volta desconsolada para o lar, xorando sobre o traveceiro abandonado na larga cama conjugal. III Dois anos mais tarde, kuando o Cônsul lhe entregou a certidão de óbito, Enriketa já se sentia curada da ausência do esposo. Envolara-se-lhe a pouco e pouco a saudade, até ke outro afeto lhe nacera nalma. E Pietro, também voluntario na grande guerra, toma-a por esposa… IV Mais dois anos ainda. A tragédia imensa ke ensanguentara o mundo reservara um novo golpe para akele lar. Surge ali, certo dia, pela porta adentro, a figura forte do Nicola, escapo dos campos turcos. — Enriketa! — Nicola! — Pietro! E um drama profundo, imenso como o debater de dois ezércitos poçantes, paira no silêncio e no olhar ansiado dakela gente. Ao lado, o perfil delicado de uma criança recorta nas sombras da parede os contrastes de um kuadro angustioso. Enriketa, de repente, toma nos braços a criança e pondo-se ao lado de Pietro: — Entre mim e ele, veja você isto, ezibindo o filho. Nicola finca o olhar rígido na antiga esposa. Meneia tristemente a cabeça. — Bem sei. Entre você e ele está iço… Para, em seguida. Silencia. O mesmo olhar severo e firme. A mesma aflição pelo ar. De vez em kuando, o riso estrídulo da criança. — Bem sei. Entre você e ele, iço, repete Nicola. E modificando subitamente a fisionomia, num gesto rápido, inopinado… — Entre mim e você Enriketa, isto…

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E a granada, estourando, levou para os ares os comparsas dakele drama triste…

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— Está findo, senhor Presidente. — Consulto o nobre acadêmico Francisco Madeira se tem alguma objeção a fazer. — Embora o conto nada tenha de notável no fundo e na forma, concordo com o prêmio conferido, apenas para que não seja aqui indicado como líder da desordem… — Convido então o senhor secretário da mesa a abrir a sobrecarta e anunciar à honrada Academia o verdadeiro nome do autor do conto premiado. Aberto o invólucro, o Secretário lê: — Procópio da Silveira. V Ia a meio o jantar quando chegou o telegrama. — Abra-o, papai. — Pois vou ler: “Procópio da Silveira, Capital. Comunico-lhe que a Academia lhe concedeu o primeiro prêmio um conto de réis e a medalha de ouro pelo seu conto Entre dois maridos. Felicitações. (a) Rodrigues Galrão, presidente”. Procópio da Silveira exalou um suspiro surdo e caiu de borco sobre o prato… — Uma síncope cardíaca, atestou o médico.

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Eu bem dizia que ele havia de morrer imortal, comentou o velho mestre…

Cambuí

I

O sol dobrava o meio-dia quando a notícia lhe soou aos ouvidos como um dobre de finados. Suarento, cansado, braços nus, peito aberto e empoeirado, recostou-se tristemente ao guatambu. — Ara! Ara! Sê soldado! Com a manga da camisa enxugou o suor viscoso que lhe escorria em bagas pelo rosto, e alisando a cabeleira úmida, eriçada e dura como crina de cavalo bravo, Juca Florêncio, rememorava as promessas que lhe fizera o Coronel Virgílio de Toledo no sentido de isentá-lo do “sorteio”. O pai, para isso, mobilizara as parcas economias, vendera a roça em flor e assinara, depois, um “creito” a favor do Zeca Gino. Pusera tudo isso nas mãos do advogado. E nada valera! Ali estava o recado do Chiquitão, escrivão da Junta, simples e lacônico, dando-lhe a triste notícia. Foram chamados 15 sorteados e ele era o número 4… — Ara! Ara! Sê soldado! E Juca Florêncio, exausto pelo cansaço, vencido pela dor, deixou escorregar das mãos calosas o cabo da enxada, sobre a qual, de cócoras, pôs-se a revolver os arquivos da memória. Era a saudade que lhe alvorecia n’alma. E um nome de mulher então brotou-lhe nos lábios e absorveu-lhe os pensamentos. O estrídulo agudo das cigarras nas árvores ressequidas pelo bochorno, chegava-lhe aos ouvidos como gritos lancinantes de almas penadas. Nada mais o interessava… A seu lado, a canícula esturrava as folhas tenras e afuniladas do milho novo e levantava um halo quente dos torrões cortados pela enxada. Lá embaixo, no vale, o Rio do Peixe espichava uma fita de prata no tapete policrômico da várzea, caracolando, descrevendo retas e curvas, cavando sulcos profundos e esparramando-se, preguiçosamente, em brejos e aguaçais. Tabuas esbranquiçadas, capituva e chapéu-de-couro confundiam-se às margens do rio, vedando a escalada das reses. Ali e acolá, a esmo, casas de sapé dos “camaradas”, casas de telha dos “sitiantes”, casinhas de monjolos e velhas taperas — um presépio vivo e cheio de simplicidade. E Juca Florêncio, olhos parados naquela paisagem, indiferente à beleza panorâmica, dava tratos à imaginação. As lágrimas rolam-lhe, então, lado a lado, pela face suja de poeira. Aquele corpo nédio e carnudo, acostumado às intempéries, a brutalidade da vida roceira, entregava os membros lassos, vencidos, a uma saudade prematura…

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Juca Florêncio não interrompeu a corrida das lembranças. Antes, sentindo-as mais intensas e vivas, levantou-se, enxugou na manga da camisa o rosto molhado do suor, coçou as falripas do mento, retornou ao eito, na ânsia de “tirar a tarefa” bem depressa. Calcava as “oito libras” no solo adusto, levantando rajadas de terra e pó. Os brotos fulvos e aveludados da samambaia saltavam ao golpe rijo da enxada. Tiriricas irritantes caíam lado a lado do milho limpo pela capina. E a terra aberta exalava um bafio quente como a evaporação de uma caldeira enorme. Juca Florêncio ajeitava com os pés nus a terra lanhada, “coroava” a planta jovem e, passo a passo, aproximava-se das estacas demarcadoras da “tarefa”. O pensamento revolvia ainda as coisas do passado. A festa do Córrego, o catira na casa do Anselmo Gomide, o mutirão do Zeca Cândido e o Cinema do Joãozico, bem juntinho dela, sentindo-lhe o calor, o cheiro do corpo moreno, mas sem a coragem de tomar-lhe as mãos, apertá-las, retê-las nas suas, como faziam — ele bem sabia — os moços da cidade… Vinham-lhe de roldão todos os passos de seu amor e ressoava-lhe no ouvido o som de sua voz, prometendo-lhe tanta coisa… Depois, o reverso: a sua próxima partida para Ibiporanga, para o serviço militar. Teria que deixá-la entregue ao desejo de outros homens, à felicidade de outros olhos… E o coração retumbava-lhe no peito, angustiado!

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Venceu mais cedo a “tarefa”. Em cassa, fingindo indiferença, passou rápido diante dos pais. Pendurou a enxada Jacaré na viga da parede e saiu calmamente. Logo desapareceu de seus olhos a casa paterna, Juca Florêncio pôs-se a correr. Tomou pela estrada vicinal cercada de gravatás e fruta-de-lobo, em cujos barrancos vicejavam curraleiras e barbas-de-bode. Ao pé do morro, parou e perscrutou o horizonte, refletiu e imediatamente entrou por um “atalho” aberto na mata coberto pela ramada densa das guaximas. Caminhou daí por diante cauteloso e sorrateiro até às margens do riacho, de onde divisava, a pouca distância, o frontispício de uma casinha branca. De repente, um vulto de mulher surge no ápice da colina. — Marta! — Juca! Chapéu rodando nas mãos, enleado, Juca Florêncio não sabe o que dizer. Uma paineira ramalhuda, derribando flores, ia colorindo de nácar a relva da clareira. — Puxa! Que quase derrubei a “vasia”, home! Que susto! — Mas eu “perciso” falar com você, Marta. E depois de breve silêncio, desfia-lhe a história do seu alistamento, de “arrequerimento” pedindo a isenção e, por fim, da chamada para o serviço militar. Teria que partir daí a um mês. A moça fita-o com ternura e equilibrando o pote no alto da cabeça, indaga, pressurosa: — Mas que você quer que eu faça, seu Juca? — Que você seja “Firme pra mim”, que não olhe pra outro home e me espere… — Ara! Eu é que “perciso lhe dizê” isso. E em tom dolente e queixoso: — Cidade grande, longe da gente, moças bonitas — Ah! É quase certo você se esquecer de mim… — Juro, Marta, juro! Você vai comigo dentro do meu coração, “arquedite”. E tomando-lhe as mãos: — Você jura, Marta, que me espera? — Se jor? Jurei, uei! — Pois então é só isso que eu quero. E apertando-lhe as mãos, satisfeito, retornou pelo “atalho” a caminho de casa. II O caminhão resfolegava pela estrada afora. Juca Florêncio permanecia indiferente à alegria dos companheiros. Não lhe feriam os ouvidos as “modas” com que eles, em langoroso descante, lembravam os catiras e cateretês do bairro buliçoso que deixavam. Talvez mesmo que a melodia mais lhe avivasse a dor “doída” da separação… Debalde os companheiros tentavam trazê-lo àquele coral rude; debalde o Zé Gato, na roda da direção, zombeteiro, reclamava-lhe a voz bonita, tão conhecida nas “redondezas”. Juca Florêncio permanecia quieto e indiferente. A aridez da paisagem arrefecia, depois, a alegria dos viajantes. A estrada como língua vermelha de lamber a imensidão da planura, bordejada de barbas-de-bode e macegas amareladas, dava agora ao panorama um tom melancólico e pesado. Aqui e ali, cedros raquíticos, enfezados, levantavam para o alto os braços torcidos e esquálidos, alicerces aéreos das casas dos joões-de-barro. Ao longe, fechando o horizonte, serras azuis tocavam o azul dos céus. Pequenos oásis de vegetação luxuriante, de aroeiras, caneleiras e sassafrases arredondados, passavam fugazmente ao longo do caminho, como parques artificiais quebrando a monotonia da paisagem. Reses sossegadas e mansas pousavam no leito da estrada, para descanso dos motores ferventes. Súbito, muito ao longe, aparece o perfil da cidade, acachapada no vale do Mandu. A alegria volta a reinar, barulhenta, sobre o dorso do caminhão. O próprio Juca Florêncio alonga o olhar curioso pelas campinas safaras e cheias de capim tostado, buscando na falda da montanha o lugar que ia lhe servir de exílio. E numa brusca exaltação nervosa, murmura entre dentes: — Ei, “sodade”! Ouvindo-o, os companheiros repetem entre gostosas gargalhadas: — Ei, “sodade”! E chocarreiros: — Viva Juca Florêncio! Chegavam a Ibiporanga. III Ao penetrar o Regimento, Juca Florêncio experimentou as sensações de um mundo novo. O exame de saúde foi a marca de seu calendário de decepções. — Roupas abaixo! Todos nus! — gritou o médico, entrando no amplo salão em que o aguardavam algumas dezenas de sorteados. Os rapazes entreolharam-se, surpresos. — Que será isso, pensaram. E ninguém se mexeu. — Roupas abaixo, já disse, gritou o médico, nervoso. — É pra ficá pelado mesmo, seu capitão? Indagou o Benedito Fulgêncio. O médico, trincando os dentes, replicou enérgico: É lógico, seu moço. Avie-se. Tire essa roupa já, and. Juca Florêncio sentiu um arrepio de pudor percorrer-lhe a medula, subir-lhe às faces e eriçar-lhe o sistema piloso. — Mas é tudo junto, seu capitão — arriscou ainda outro sorteado. O militar abriu a bocarra numa gargalhada sarcástica… e todos se despiram.

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Quando o médico saiu despejando baforadas de um charuto cheiroso, Juca Florêncio, enfiando as ceroulas de algodão listrado, deixou escapar outra vez, entre dentes: — Ei “sodade”!

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Os moços sorteados identificaram-se logo com a vida da caserna. Juca Florêncio não estranhou a intensidade do trabalho. O toque da corneta encontrava-o sempre uniformizado e pronto para o serviço; mas aquele movimento coordenado de membros e corpos, aquelas distensão e contração de nervos e músculos, aquele “vai vem daqui pra acolá” enchiam-no de secreta revolta. — Afinal de contas — pensava — que é que adianta isso pra ser soldado? O sargento instrutor, autêntico espécime da gente nordestina, teve logo por ele ojeriza ou predileção. Arranjou-lhe um apelido: — Olá, seu Cambuí! Cuidado com a perneira. Falta polimento. E todos os que conheciam seu amor à terra natal festejaram o batismo de seu novo nome. — Soldado Cambuí! — Pronto, seu sargento. — Toma um níquel: vai à venda buscar uma caixa de fósforos. E lá ia Cambuí sopitando sua indignação: — Mas é pra isso que nóis viemo aqui? Pra sê camarada desse “cabeça-chata”? Educado na escola do trabalho, disciplinado pela força da natureza bruta, em cujo contato cresceu e se fez homem, Juca Florêncio recebe de ânimo aberto o possível excesso de autoridade de seus superiores. — Reagir pra quê? — pensava. Pra tomar cadeia? E como não via remédio para a situação, murmurava, sozinho: — Quá! Também, é verdade, não perdeu aquela inata linha de independência que lhe conformava o caráter. Procurava ver na vida militar o lado bom, disciplinador e ordeiro, que fazia da caserna uma verdadeira escola de civismo. Se um ou outro fato lhe feria as susceptibilidades, seu espírito generoso não o guardava por muito tempo. Foi dos primeiros a matricular-se na escola regimental. Frequentou-a com pontualidade e aplicação.

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Um ano de serviço militar! Um ano em que, servindo ao seu país, que ele já compreendia e amava, viveu sonhando o dia do regresso à casa paterna. Marta fora sua constante preocupação. As agruras da caserna eram-lhe como que o sacrifício tributado a sua deusa. Sentia que o sofrimento, a dor, a saudade, aumentavam-lhe a intensidade do amor. E assim, ele polia as perneiras do sargento instrutor ou carregava para a fonte a roupa suja do cabo pernóstico do seu pelotão, levado pela mesma disposição de ânimo com que atendia ao toque da corneta, chamando-o à forma. Às tardinhas, ia pôr-se à porta da Catedral, de costas para a nave, olhos postos na linha do horizonte, em cuja fímbria longínqua o Pico de S. Domingos alteava a cabeça granítica, a devassar a amplidão dos espaços. Ficava ali na atitude contemplativa de um devoto pagão, até que a noite chegava e estendia-lhe diante dos olhos a cortina da escuridão. Voltava então cismarento para o quartel, indiferente à vida agitada da cidade. Se o convidavam para um “passeio” à terra natal, recusava: — Pra ir e voltar outra vez? Não. E não ia mesmo. Bastavam-lhe as notícias que lhe vinham trazer. Notícias em que o nome de Marta não era pronunciado, é certo. Mas, a vida do bairro, simples e despreocupada, sem acontecimentos de qualquer importância, merecia-lhe uma indagação curiosa e insistente. Nada acontecera que merecesse registro — então Marta continuava em sua lembrança, em sua saudade, como a dona e soberana de sua vida… Um ano de serviço militar! Um ano em que a ação educativa da caserna lhe atuou no espírito e no físico, aprimorando-lhe o corpo e a alma. IV As festas com que foi recebido em casa, após concluído o serviço militar, não lhe despertaram emoções. A sanfona do Antonio Correio abrira e fechara, roufenha e estridente, durante toda a noite, sem que Cambuí se animasse a dançar uma polca ou uma quadrilha na sala de terra batida. O cateretê esfuziante que movimentava o “terrero” não teve a ajuda de seu sapateado e de sua voz bonita, chorosa. — Estou destrenado, dizia… Mas, o segredo de sua esquivança era a ausência de Marta, que embora convidada, não comparecera. Não a vira e nem dela tivera notícia. Tímido e discreto, não se animara perguntar por ela. Ajeitava a conversa de forma que se lhe falasse no nome, mas só obtinha informações sem importância. As festas, por isso, decorreram-lhe insossas e enfadonhas.

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No dia seguinte, procurou jeito de aproximar-se de Marta. Foi pôr-se de cócoras ao pé da paineira que abria a fronde ramalhuda e basta, como um dossel verde, sobre a clareira escampada e limpa. O murmúrio leve da fonte lembrava-lhe as confidências da última entrevista… Ali recebera a certeza de ser amado, e ali — pungia-lhe o pressentimento — ia sentir a morte de suas ilusões. Horas a fio, ouvido atento ao menor ruído, Cambuí acompanhou a trajetória do sol pelos quadrantes do céu. Depois, cansado, retirou-se cabisbaixo e triste. Um bando de sabiás modulava na ramada do arvoredo a melodia formosa das selvas brasileiras… Mais três dias consumidos na expectativa de vê-la e falar-lhe. — Ela há de vir buscar água, pensava. E veio. Surgiu no alto da colina, sopesando o pote sobre a rodilha de pano. Entoava uma canção antiga. — Está mais bonita, comentou. Os braços roliços e carnudos, alevantados, equilibrando a vasilha, deixavam ver a protuberância dos seios túrgidos exalçando a elegância do busto. Presa às ancas largas, o vestido de “riscado” curto deixava descobertas as pernas musculosas. A cabeleira farta e negra, comprimida sob a rodilha do pano branco, emoldurava-lhe a tez morena e aveludada. Cambuí sentiu o coração palpitar intensamente. Marta depôs sobre a relva a vasilha de barro. Retirando a rodilha, agitou levemente a cabeça assentando com a mão espalmada os cabelos de azeviche. Do outro lado do riacho, Cambuí põe-se de pé: — Marta! Ela volta-se rapidamente para ele. Fita-o assustada. As faces tingem-se-lhe de rubor. — Juca! E antes que Cambuí pudesse articular palavra, Marta, num movimento desabrido, sai a correr em direção à casa paterna. Desaparece no topo da colina. Cambuí sente fugir-lhe a respiração. Recosta-se ao tronco da paineira, entontecido, incapaz de raciocinar. Arvores e terra, azul de céu e clorofila das plantas, claridades do sol e escuridão de abismos interiores — tudo se lhe agita e tumultua na retina e no pensamento. Deixa então o corpo pesado escorregar pela epiderme rugosa da arvore e vem sentar-se inerme sobre o capinzal. Mais calmo, tenta interpretar a atitude da moça. Procura razões e argumentos. Raciocina. Sonda a memória, na ânsia de descobrir fatos recentes ou remotos capazes de justificar aquele procedimento. Nada! E pelo “atalho” afora depois, rastejando os pés pelas urtigas, raspando as mãos pelos carrapichos, ralando o tronco nos cravatás, insensível à ponta aguçada dos jacarandás e juás — Cambuí procura debalde uma explicação… — Tudo acabado! Tudo acabado!

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Cambuí não voltou à clareira da fonte. Por mais que pensasse, a atitude de Marta era-lhe incompreensível. Preferiu guardar no recôndito do peito o segredo da desilusão. Não procurou verificar a causa daquele procedimento, como não comentara a ausência da moça nas festas realizadas em sua casa. Aceitava os fatos consumados com o fatalismo que caracteriza os homens do campo. Entretanto, Marta continuava a viver em sua memória e em seu amor. Não a esquecia. Muita vez, no eito, ficava com a enxada no ar, parada sobre a erva daninha, como a espada de Dâmocles, enquanto o pensamento voava para os lados da casinha branca que, no alto do outeiro, escondia a eterna namorada de seus sonhos. Alguma vez, de envolta com os brotos de carquejas, avencas silvestres e tiriricas, a lâmina afiada da enxada, manobrada a esmo, decepava o caule tenro do feijão e do milho… De dia e de noite, à soalheira ou ressupino sobre o leito, Marta era a única preocupação de seu espírito. Todos notavam a transformação de seus hábitos. O moço folgazão que centralizava o bulício trepidante do “catira” — metia-se na deveza das matas ou engaiolava-se no quarto pequenino, recusando convites para bailes e festas. — Saudades do Regimento, dizia. E o Alfredo Eugênio comentava: — É uma desgraça para a lavoura esse sorteio militar, não há dúvida.

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Cambuí notava que Zeca da Silva, montando um “alazão” ricamente ajaezado, passava amiúde pela estrada vicinal ladeada de cravatás e jurubebas. — Que será! E é quase sempre às mesmas horas, refletiu. A roça que lavrava na encosta do morro era-lhe ótimo ponto de observação. A seus pés, arrozais maduros, agitando as louras espigas, estendiam-se pela várzea do Rio do Peixe como toalha jalde presa à gleba pelos tarumãs e guabirobeiras. Aos lados, corcovos do morro cobertos de “palhas” e feijoais nascentes. Capões de mato denso escondiam as “minas” d’água, que escorregando pelas grotas, iam semeando, aqui e ali, casinhas caiadas e casebres de pau a pique. Foi daquele mirante alcandorado que Cambuí avistou Zeca da Silva no alazão, atravessando o arrozal, fraldejando a colina, tomando a orla do mato e sumindo-se, depois, atrás da encosta. Uma desconfiança atroz verrumou-lhe o pensamento. — Não é aquele o divisor de águas do sítio de Marta? E o ciúme varou-lhe o coração. Escondeu a enxada sob uma ramada de feijão e deitou a corre, atravessando “palhas” e plantações, pulando “valos” e cercas de arame farpado, abrindo com o peito o matagal agreste. Atingindo a beira do mato, acompanhou as pegadas do “alazão”. Dobrou a encosta e meteu-se por uma “picada”. Parou: o “alazão” arreado, preso ao tronco de uma caneleira, encheu-o de inquietação. O inesperado da descoberta acirrou-lhe mais a desconfiança. Tumultuavam-se-lhe os pensamentos… Cautelosamente, passo a passo, afrouxando o peso dos pés sobre as folhas secas, contendo o farfalhar dos ramos verdes, seguiu os sinais de sapato na terra úmida. Continha a respiração e apertava no peito os estos do coração aflito. Contornando uma touceira de taquara, avistou Zeca da Silva agachado e quieto sob uma latada de maracujás. A pouca distância, na fímbria do mato, um “carreador” orlado de sapés e assapeixes, por onde transitavam os trabalhadores da roça. Do outro lado, o mandiocal verdejante. Cambuí agachou-se também, atento aos movimentos de Zeca da Silva. — Que fará aqui esse lagalhé, pensou. A curiosidade punha-o nervoso e solerte. A imaginação trabalhada pela desconfiança, coordenava-lhe pressentimentos dolorosos. A um movimento de Zeca da Silva, Cambuí divisou, através do mato rarefeito, a figura esbelta de Marta. Descia o “carreador” levando na cabeça a gamela de pratos e talheres que servira de almoço aos trabalhadores do pai. Ao defrontar a “picada” um assobio fê-la deter-se. Parou. Olhou para diante e para trás. Examinou os arredores e, rapidamente, deixou a vasilha debaixo de um manchão de capim-gordura e enveredou-se para a latada de maracujás. Dentro em pouco, os braços possantes de Zeca da Silva recebiam aquele corpo jovem e delicado num amplexo voluptuoso. Cambuí aproximou-se pé ante pé. Queria ter bem perto de seus olhos a cena dolorosa que lhe matava, para todo o sempre, as ilusões e a paz de sua alma. E com os olhos desmesuradamente abertos, tocado de viva excitação nervosa, o coração cheio de angústia, viu e sentiu o desenrolar daquele amor criminoso, e depois, pé ante pé, passo a passo, recuando cautelosamente, embrenhou-se na mata… V No dia seguinte, Cambuí não foi ao serviço. Preferiu dar asas aos pensamentos. Desceu pela estrada vicinal onde os cravatás agressivos se imobilizavam nos barrancos, dando guarda à alimária andeja. Frutas-de-lobo, redondas e verdes, penduravam-se aí nos galhos frescos; juás sazonados, dentre miríades de espinhos, desafiavam dedos e paladares… poeira avermelhada pelo ar. Cambuí caminhava devagar. Uma história longa ia-se-lhe perpassando pela memória. Na curva do caminho surge um cavaleiro. Elegante. Um “alazão” ricamente ajaezado. — Bom dia, Zeca da Silva. — Bom dia, Juca. — Você tem fogo aí? — Tenho, sim. Tenho um “binga”. É pra pitá, não é? — É, confirmou Cambuí. E sacando da aba da orelha um cigarro de palha: — Então é certo que você vai se casar, Zeca? — É certo, Juca. E é pra já. — Que bão! Temos catira e pagodeira… — Catira, não, home! — Uei, por que não há de ter catira, Zeca? — Na cidade não usa catira. É só baile. Cambuí refletiu um pouco. — Mas você vai casar com moça da cidade? — Pois não sabia, Juca? E depois de breve silêncio: — Vou casar com a filha do seu Teles.] — Aquele do açougue? — Isso mesmo. Cambuí comprimiu a cinza do cigarro contra a unha do polegar, soltou uma baforada de fumaça, pigarreou: — Ah! Não sabia. Pensei que você se casava aqui na roça. E cuspindo longe, devolveu o “binga”: — Muito obrigado, Zeca da Silva. Até logo. O moço feriu as esporas nas ilhargas do cavalo e partiu num galope. VI No dia seguinte, ainda, Cambuí não voltou ao serviço. Cedo, trouxe para o “cocho” o pangaré, deu-lhe boa ração de milho e, em seguida, foi para a beira do córrego. Sacou da cinta o facalhão, embebeu-o n’água e pôs-se a amolá-lo. Afiou-o, aguçou-lhe a ponta, experimentou-o, partindo, no ar, um fio de cabelo. — Tá bão. É capaz de fazer a barba. Embainhou a ”lapiana”, ajustou-a na cinta, escondendo-a sob a fralda da camisa. Calmo, trauteando uma toada sertaneja, tratou, depois, de encilhar o cavalo, prendendo ao rabicho o laço ensebado que caía pela garupa. Tomou a altura do sol. — Tá na hora, murmurou sozinho. E, cavalgando o pangaré, tomou a estrada larga, atravessou a galope o arrozal, vadeou o rio do Peixe e veio deter-se no capão de mato, escondendo o pangaré entre touceiras frondosas de marias-pretas. Desprendeu o laço do lombilho, acertou-lhe o no corredio, manobrou-o e, em seguida, correu a instalar-se atrás da latada de maracujás. De bruços, aguçou o ouvido. O coração sobre a terra fresca e fofa batia-lhe em ritmo descompassado. As mãos destras e grossas acertavam o cabo do facalhão na cinta de couro cru e mantinham o laço em espirais estendidas no solo. Um agitar estranho de folhagens chamou-lhe a atenção. Não se mexeu. Reteve a respiração. Contornando a moita de taquaras, então, Zeca da Silva, passo a passo, espreitando o “carreador”, vem sentar-se no toco de uma canjarana. Sossegadamente, acende o cigarro de palha na chama pálida do “binga” e vai acompanhando com o olhar descuidado as espirais de fumaça. A seu lado, sorrateiro, mansamente, deslizando pelo solo como um réptil, Cambuí se levanta. Aproxima-se cauteloso, apalpando o chão com a ponta dos pés. Depois, medindo bem a distância, agita rápido e silencioso o braço. Rodopiando, descrevendo um círculo no ar, a armadilha cai em cheio sobre o corpo do moço, apertando-lhe e tolhendo-lhe os movimentos. Antes que Zeca da Silva experimente uma tentativa de defesa, Cambuí cai-lhe em cima e, num golpe certeiro e firme, põe-no incapaz de reação. Em seguida, imobilizando-lhe as mãos e os pés, amarra-o fortemente, tampona-lhe a boca. Passa-lhe o lenço grande, de chita debaixo das mandíbulas, prendendo as pontas no alto da cabeça. Quando o rapaz abriu os olhos, Cambuí raspando-lhe o ventre com a ponta do facão, segredou-lhe: — Você vai ficar quietinho como um defunto, sabe? Isso, é para seu bem. Amarra-o então ao tronco da cajarana. Examina bem a eficiência dos nós e tampões, ajustando-os na boca, e sai aos pulos de carreira. Cavalga o “alazão” e toca por diante o pangaré. Meia hora depois, Cambuí apeia à porta do padre Antônio, na cidade: — Seu vigário, é pra o senhor ir confessar um doente de morte, mas é já, já mesmo. Padre Antônio é um exemplo de amor e bondade. — Sim, sim, meu filho. É longe? — Não, não, seu vigário. É daqui meia légua. — Tá bão. Tá bão! Não reluta ao sacrifício e ao dever. Apanha a maleta e dentro de pouco o santo sacerdote e Cambuí galopam pela estrada larga e poeirenta, silenciosos e ensimesmados. Cada qual leva em si mesmo um comparsa para o diálogo... As esporas de Cambuí incitam pangaré à marcha apressada. Longe, a toada sentimental de um mutirão. — Seu vigário. O senhor vai fazer o favor de apear e esperar aqui, porque eu vou trocar de cavalo. O pangaré está mancando… Estavam à porta da casinha de Marta. E enquanto padre Antônio descansa e conversa, Cambuí sai. Toma o carreador, a cavaleiro da casa, caminhando de carreira, à sombra das árvores ramalhudas do capão denso. Entra por uma “picada” e chega à cajarana. Desamarra os pés de Zeca da Silva e o levanta, retirando-lhe os tampões da boca. — Pronto! Caminha agora! — Mas que é isso, Juca? Você está louco? Que mal lhe fiz? — Não temos conversa. Toca a andar. Vamos! Depressa! Zeca da Silva não titubeou. Em passadas largas, tomou a direção indicada. Sentia nas nádegas a ponta aguçada da faca enorme. Queimava-lhe o pescoço o bafo quente e a respiração ofegante de Cambuí. As pernas tremiam-lhe e o coração batia-lhe, aos bóleos, no peito largo e musculoso. Ao penetrar a sala desataviada da casinha branca, Zeca da Silva, pálido, não pede mais explicações. A consciência do crime e a certeza da vingança iluminavam-lhe o raciocínio. — Seu vigário. O senhor vai casar esse moço com essa moça. O padre fitou de olhos esbugalhados aquela cena, incapaz de compreendê-la. — Casar? — É, sim. E Cambuí voltando-se para Zeca da Silva, em tom imperativo: — Você fez ou não fez mal pra essa moça? O rapaz não respondeu. Abaixou a cabeça, confundido e atordoado. Marta, de pé, sente o rubor subir-lhe às faces e duas lágrimas silenciosas caem-lhe dos olhos. Padre Antônio reflete um instante. A consciência mostra-lhe o caminho certo. — Mais valia — pensava — pular por cima dos cânones burocráticos do que perder a oportunidade de ajudar a ressarcir um grande pecado. Abriu a maleta. Pôs a estola e tomou do livro próprio. — Mas faltam as alianças. — Estão aqui, diz Cambuí. E tirando-as do bolso da calça, dirige-se a Marta: — Eram para nós. Agora são para vocês… Com a voz soturna, então, padre Antônio toma sobre as estolas as mãos dos jovens: — Ego conjugo vobis in matrimonium… — Amém, murmura Cambuí, embainhando a lapiana…

Os fueiros

Pouca gente, decerto, havia percebido que o carro de bois do Zico Ferreira chiava mais alto quando se aproximava da fazenda Candelária. Não era só o ruído penetrante e agudo: o carreiro punha-se a gritar pelos bois, sem que, na realidade, houvesse motivo para isso. — Brinquedo, peste! Fasta Maiado, vorta Turuna! Guampudo! Trepado na ponta do cabeçalho, equilibrando-se entre os fueiros da frente, Zico Ferreira não se preocupava com a direção do veículo. Espetava os olhos maliciosos numa das janelas da fazenda, onde aparecia — era quase certo — o perfil bonito de Lisinha. Os gritos do carreiro não serviam para atiçar o passo tardio das juntas de bois, tão certas iam elas pela estrada vicinal fronteira à casa da fazenda, nem de igual maneira — sobre os eixos movediços repousava carregamento capaz de produzir aquele chiado imenso. Os cocões do carro, isso sim, recebiam um manojo de palha embebida de querosene, destinado a provocar maior atrito, enquanto a voz do carreiro, unida ao ranger estrídulo do veículo, ia ferir os ouvidos da moça, na casa senhorial da fazenda… O carro rodava depois lentamente, preguiçoso e demorado, sobre a areia esbranquiçada da várzea, sem que o rapaz agitasse de leve a vara do ferrão ou atordoasse a boiada aos berros e xingos. Ao contrário: os bois, jungidos à canga, afrouxavam o passo, ajeitavam os pescoços nos canzis e iam arrancando, aqui e ali, as touceiras de capim viçoso, ao longo da estrada. Da janela da fazenda, a moça acompanhava a marcha sossegada do carro, até que a porteira do pasto escondia de seus olhos o vulto do carreiro, de pé, no cabeçalho da cheda. Pouca gente, decerto, percebia isso. Os “camaradas” ingênuos da fazenda sorriam docemente, ouvindo a gritaria barulhenta do carreiro e o ruído estridente do veículo. — Xi! Que boiada ruim do seu Zico! Diacho! Num vale nada! Valia muito. Valia até para disfarçar o romance começado entre o carreiro e a moça bonita da fazenda. E a conivência dos bois, até, já era manifesta: transposta a divisa do pasto o carro readquiria a velocidade costumeira, sem o aguilhão nas juntas do coice nem a correia no lombo das guias…

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Foi na festa dos Vazes que eles se conheceram. O arraial, entupido de gente, derramava-se em casebres de sapé e choças improvisadas, cobertas de ramos verdes, pela encosta acima e aos lados da igreja pequenina. Caminhões e automóveis transportavam para ali, desde o alvorecer, a população de Rio das Antas, toda ela devota de Nossa Senhora da Conceição. A charanga desafinada de seu Rosa atroava os ares, espantando os cavalos dos roceiros, amarrados à sombra das árvores ramalhudas, mas alegrando o coração da gente boa e simples dos bairros vizinhos. Sobre o patamar do átrio, ao lado da ermida, Zico Ferreira defrontou pela primeira vez Lisinha Junqueira. Impressionou-se com a beleza cabocla da moça. Jamais vira olhos mais pretos e tão grandes, nem sorriso algum lhe mostrara ainda lábios e dentes iguais. Cabelos pretos e anelados, esbelta e elegante, cor levemente amorenada, Lisinha Junqueira impressionava, na verdade, os moços acanhados da roça e os rapazes petulantes da cidade. Mas — ninguém soube por que — a moça preferiu o jeito tímido de Zico Ferreira ao namoro impertinente dos elegantes da cidade. Não deu trela ao assédio atrevido dos rapazes, mas pôs os olhos nos olhos do carreiro, falando-lhe desde logo a linguagem silenciosa dos que amam… Zico Ferreira percebeu então um novo rumo aberto em sua vida. Precavido, tentou afastar de si o halo envolvente daqueles olhos e repelir os eflúvios sugestivos que irradiava a bonita moça. Deixava-a então no átrio da igreja, descia a ladeira atapulhada de romeiros, passeava os olhos pelos botequins e barracas rebrilhantes de quinquilharias, escutava os dobrados melosos do Zé Nascimento, tentando, dessa maneira, afastar do pensamento e da retina o perfil simpático de Lisinha. Ficava assim longo tempo, perambulando pelo arraial, tropeçando nas crianças andejas, pisando os pés descalços dos roceiros, como se de olhos abertos não visse nem sentisse a multidão agitada e barulhenta subindo e descendo. Quase sem perceber, arrastado pelo coração impenitente, voltava de novo ao átrio da ermida e, como as mariposas embriagadas de luz, ali ficava atraído pela moça, vencido e submisso, bebendo-lhe o olhar e recolhendo-lhe a voz. Mais tarde — já em casa — Zico Ferreira não pôde analisar a maneira como chegou a aproximar-se da moça e falar-lhe. Parecia-lhe que uma força misteriosa, igual à do ímã que ele vira na oficina do Lázaro, o levara para ela. Afigurava-se-lhe um sonho ou começo de loucurra. Não lhe parecia possível que ele, tímido e certo de sua situação, atrevesse a procurá-la e lhe dissesse qualquer coisa além da conversa trivial de pessoas desinteressadas. Não sabia explicar mesmo como aquilo se dera. — Castigo de Nossa Senhora da Conceição, por lhe profanar o átrio da ermida, pensava. Artes do capeta, não havia dúvida.

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Tinha razão Zico Ferreira. Se a sua posição social lhe permitia desejar a moça bonita da fazenda Candelária, as leis da igreja e da sociedade vedavam-lhe o direito de fazê-la sua esposa ou mesmo enamorar-se dela. Era casado. A certeza da responsabilidade aguilhoava-lhe a consciência. Compreendia bem que entre ela e ele erguia-se uma barreira insuperável, contra a qual nada valiam as leis do coração. Sentia, no entanto, uma atração irresistível por ela. A festa dos Vazes estava-lhe constantemente no pensamento. — Castigo de Nossa Senhora da Conceição, murmurava ele. E procurava então na quietude do lar e no carinho da esposa esquecer-se da moça, matar na memória a lembrança das horas passadas a seu lado, reprimir a ânsia de vê-la e ouvi-la de novo. Tentou mesmo aproximar-se mais da esposa, na expectativa de que poderia experimentar a seu lado as sensações que a moça lhe provocara. Mas Josefina não tinha para ele os atrativos que Lisinha Junqueira irradiava. Vira-a poucas vezes antes do casamento. Nem mesmo pudera fixar-lhe bem as feições. O noivado durara pouco — mês e meio, apenas — sem que nesse prazo pudesse sequer ouvir-lhe a voz. Quando o João Gato lhe transmitiu o ajuste do casamento, foi como se lhe dissesse que a festa dos Vazes estava marcada: nenhuma emoção lhe despertara. — Quá! Se a gente tem que se casar um dia, casa logo, uei! E assim foi. O cerimonial do casamento causou-lhe o mesmo interesse que a beleza ou a feiúra da esposa pudesse despertar-lhe. Mais impressão lhe deu o catira bulhento promovido pelos sogros, do que a figura encantadora de Josefina, sob o véu branco e a grinalda de flores de laranjeira… Recebeu-a assim. E sem interesse nem amizade, decorria-lhe assim a vida conjugal. Josefina, por seu turno, fria e inexperiente, não tinha pelo esposo o desvelo e os cuidados, que, no lar, vencem todas as resistências e geram sentimentos e afetos. Por isso, fracassou-lhe a tentativa de encontrar junto da esposa o sossego para o coração atormentado. Lisinha Junqueira permanecia-lhe na memória constantemente, e o seu perfil bailava-lhe na retina, dia e noite, como se a santa milagrosa lho pusesse ali para seu maior castigo e sofrimento. Por fim, escravizou-se inteiramente ao amor. Via-a de longe, amando-a em silêncio, resguardando-se da vista indiscreta dos “camaradas”, certo de que a língua candente do povo não lhes perdoaria a irregularidade do namoro.

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O passar do tempo não refreou o amor impossível de Zico Ferreira nem lhe quebrou tampouco o segredo do namoro. Ao contrário: duas vezes por dia, o chiado agudo do carro e os xingos intencionados do rapaz chamavam à janela a moça bonita da fazenda. E assim, Zico Ferreira sentia-lhe crescer no coração aquele amor impetuoso, alimentado ainda mais pela certeza do impossível. Alanceavam-lhe além disso a dúvida e a desconfiança: — Será que ela sabe, murmurava sozinho. Será? Era-lhe um martírio pensar que conhecendo sua situação viesse ela a repeli-lo e detestá-lo. Pensou então procurar jeito de confessar-lhe tudo e, conforme fosse, referir-lhe seu sofrimento e seu grande amor. Nessa hora, cálculos e projetos desencontrados, patéticos e violentos, às vezes, enchiam-lhe a mente superexcitada, tornando-lhe a vida insuportável e triste. — Se soubesse escrever — pensava — escrevia-lhe uma carta bonita e grande… E firmou então, o propósito de acertar as coisas na “destala” do Luziano César, de maneira que lhe fosse possível falar-lhe livremente. E isso se deu. Enquanto os velhos matutos prendiam a atenção dos companheiros, narrando-lhes “causos” de assombração, à luz mortiça das lamparinas de querosene, e as unhas encardidas dos caboclos rasgavam a folha do fumo, murcha e pegajosa — Zico Ferreira e Lisinha Junqueira encontravam-se à porta do paiol trocando confidências. Uma sensação de alívio imenso e doce inundou a alma do rapaz ao conhecer que a moça sabia-o casado. A dúvida e a incerteza transfiguraram-se-lhe então numa alegria íntima, quase infantil. Teve ímpetos de abraçá-la, cobri-la de beijos, intensamente, freneticamente, de tê-la demoradamente sobre o peito, auscultar-lhe o coração, sentir-lhe a carne em sua carne… faltou-lhe o ânimo, traiu-o a coragem para isso. Depois, foi uma sensação esquisita, um entorpecimento de nervos, uma tremura nas pernas, um suor frio na testa, um enlanguescimento pelo corpo todo, e as lágrimas banhando-lhe o rosto moreno, queimado de sol… A custo encontrou a direção da casa, enquanto Lisinha, solerte, embarafustava-se pela porta da cozinha e ia retomar o lugar vazio, escutando interessada os “causos” do Anselmo Gomide. Zico Ferreira, escarrapachado no tamborete, tinha o pensamento longe, num mudo à parte…

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O amor crescente por Lisinha Junqueira fazia que Zico Ferreira mais se afastasse do lar. Procurava, é certo, sofrear a repulsa que sentia pela esposa, o desejo de afastar-se dela, de não ter nos seus os olhos meigos e ingênuos da boa companheira. Muitas vezes mesmo, fez tenção, firme de ir ao encontro de Josefina, ao chegar em casa, retribuir-lhe os afagos, mostrar-lhe a fisionomia alegre, como dantes. Mas, o carinho da esposa, os cuidados com que ela o recebia, e lhe preparava as abluções, e lhe arrumava a roupa limpa, e lhe cuidava do jantar — eram-lhe um martírio, um sofrimento atroz, uma torquês apertando-lhe o coração… A figura insinuante da bonita moça da fazenda da Candelária bailava-lhe no pensamento, como que a vigiá-lo. Zico Ferreira, então, repelia bruscamente o carinho de Josefina, alegando qualquer coisa inexistente: cansaço ou doença… A esposa, simples e boa, não compreendia a indiferença do marido, e retribuía-lhe com paciência silenciosa o arrebatamento e a brutalidade de seus gestos. Não era perturbada a paz do lar, porque à aspereza de Zico Ferreira contrapunha-se a resignação de Josefina.

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É preciso acabar com isso, pensava Zico Ferreira. Desse jeito, não se veve… Realmente, para o coração enamorado do carreiro urgia uma solução capaz de mitigar-lhe o sofrimento e satisfazer-lhe os caprichos do amor. Nenhum fim, porém, lhe ocorria à mente senão aquele que concretizasse a posse absoluta da moça, embora infringindo as leis sociais e a condenação da igreja. Se o coração lhe ardia apaixonado, o ambiente do lar, por outro lado, lhe era insuportável. E, antes que a língua do povo lhe esmiuçasse a vida, penetrasse-lhe o lar e descobrisse o namoro clandestino, armando escândalo e desmantelando-lhe os sonhos — queria Zico Ferreira conquistar definitivamente a moça, de maneira que ela entendesse. Armou então o plano temerário de procurá-la alta noite, na janela onde a divisava diariamente. Escalaria o pavimento térreo, introduzindo, de espaço em espaço, os fueiros do carro na parede de pau a pique, preparando assim a escada que o levaria ao peitoril. Depois, com a ponta da “lapiana”, torceria a taramela e saltaria para o quarto da moça, sem que os moradores da casa o percebessem. Delineado o plano, Zico Ferreira tratou de executá-lo. — Será na quinta-feira! Nessa noite, deixaria o carro na cidade, no rancho do Candoca, evitando a desconfiança de Josefina. E sob as vistas discretas e inocentes do pequeno “candeeiro”, ao rodar do carro, ia desenrolando assim todos os passos do plano, resolvendo mentalmente todos os óbices, afastando todas as dificuldades. Apaixonado, não podia prever a possível resistência da moça nem o alarma que ela, desconhecendo os seus projetos temerários, certamente daria, ao vê-lo transpor o peitoril da janela. Ao contrário: acreditava que a moça não relutasse acompanhá-lo, descesse com ele a escada improvisada e partisse para sempre em busca de uma vida feliz e venturosa. Iriam então para uma terra longínqua, onde ninguém os conhecesse, sem cujo meio se integrariam de maneira a nunca serem encontrados pelos moradores de seu bairro. Trabalharia bastante, ao sol e à chuva, e quando chegasse em casa, molhado ou suarento, mataria a canseira nos braços de Lisinha, e receberia nos seus beijos a coragem e a força para a trabalheira do dia seguinte. Josefina, estava certo, não lamentaria o abandono. Fria e submissa procuraria decerto a casa dos pais e o esqueceria depressa. A imaginação ardente de Zico Ferreira trabalhava assim intensamente, insensível à soalheira, indiferente ao crepúsculo, alheia à preguiça da boiada, esquecida da figura canhestra do pequeno “candeeiro”. A noite chegou a casa. Desatrelou os bois. Tirou-lhes a canga, separou as tiradeiras, enrolou o correame e abriu a porteira do pasto. Depois, foi bater à porta da cozinha. Não estranhou a escuridão e o silêncio da casa. Chamou por Josefina. Nenhuma resposta. Gritou. Nada. Tudo silêncio e escuro. Bateu com força. Exasperado, dispôs-se a arrombar a porta. — Eu acho que siá Zefina não taí não, patrão, murmurou o “candeeiro”. — Uei, não taí por quê? O rapazinho, encafifado, não respondeu. Zico Ferreira inquiriu-o de novo: — Não taí por que, Tião? Diga, uei… O “candeeiro”, tímido, meio desconfiado, informou então: — Vancê não sabe, patrão? E acrescentou: — Quando vancê drome na cidade, siá Zefina vai drumi cô seu Filício… — Aquele dali? Perguntou, indicando a fazenda fronteiriça. — É, sim sinhô. Zico Ferreira aquietou-se e refletiu. Realmente, devia ter ficado na cidade, não fora o fracasso imprevisto de um negócio. E Josefina, por igual, não podia contar com seu regresso.] O rapaz, então, ao pé da escada tosca, na noite escura, pôs-se a pensar, a refletir, a analisar os acontecimentos presentes e passados, examinando os pormenores, descobrindo-lhe minúcias interessantes. Josefina estava àquela hora, pensava, nos braços de outro homem. E ele, que nunca percebera aquilo. Nunca! Também, tão simples, tão ingênua, tão cheia de afagos por ele: preparando-lhe as abluções, arrumando-lhe a roupa limpa, cuidando do jantar… Uma vez por semana, era quase certo, ele dormia na cidade. Quatro vezes por mês! — Quanto tempo, meu Deus! Fez as contas: — Dois anos! Sentou-se no degrau da escada, puxou o chapéu e procurou coordenar melhor o pensamento. A figura meiga e resignada da esposa punha-se-lhe na mente, como se estivesse em carne e osso à frente de seus olhos. Ouvia-lhe a voz suave e doce. Sentia-lhe a luz dos olhos mansos. Via-a afastar-se simples, sossegada, sem uma palavra áspera, quando ele, estouvado, repelia os seus afagos e carinhos. Uma dor pungente brotou-lhe então dentro da alma. — E ela está agora na cama do seu Filício… Levantou-se. — Ocê vai drumí, Tião. Eu vou saí, vô pra cidade. Ajeitou a “lapiana” no cós da calça, pôs de novo o chapeirão na cabeça, e saiu. A fazenda do Felício Bento ficava ali mesmo, na distância de grito. Encaminhou-se para lá. Batiam-lhe as têmporas e a febre escaldava-lhe a fronte. Pensamentos agitados e loucos, coração descompassado… Venceu depressa a distância. Pulou a cerca. Mansamente, abeirou-se da casa. Percebeu luz na cozinha. — Se eu bater eles fogem. Ele queria o flagrante, o ato positivo, contra o qual não houvesse desculpas nem sofismas. Contornou a casa, pé ante pé, cuidadosamente. Porcos insones fossavam a terra e grunhiam aqui e ali. Sapos ferreiros batiam bigorna no brejo próximo: — Ten-ten! Ten-ten! Esfregando-se pelas paredes, chegou ao porão aberto, tateou as trevas até alcançar o carro de bois. Arrancou-lhe os fueiros com cuidado, aconchegou-se outra vez à parede de fora e foi introduzindo nela a ponta dos fueiros, de espaço em espaço, acertando-os bem, preparando assim a escada que o levaria a transpor o peitoril da janela. Feito isso, sem ruído, caminhou pela casa grande, escura, quieta, apalpando as paredes, tomando a direção da cozinha. Aí, deparou-se-lhe o quadro presumido: Josefina ternamente abraçada a seu Felício tagarelava à boca do fogão, alegre e feliz. Os braços robustos do fazendeiro enlaçavam a cintura delicada da moça, apertando-a docemente. Zico Ferreira parou no limiar da porta. Doía-lhe o coração. As pernas bambas e tremulas, quase vergavam ao peso do corpo. Pensou mesmo que ia cair. Firmou-se no batente da porta. Tentou falar, mas a voz não lhe saiu da garganta. E ficou assim longo tempo, parado, inerme, sem força e ânimo para dar sinal de si. Poderia escutar, palavra por palavra, o tagarelar de Josefina e a conversa sossegada de seu Felício. Não escutava, não… Tudo lhe baralhava na imaginação… Por fim, tossiu. Josefina e Felício, assustados, levantaram-se pressurosos. E antes que Zico Ferreira lograsse qualquer atitude hostil, Felício embarafusta-se pela escada interna da cozinha e foge pelo porão. Josefina fica ali, de pé, estatelada pela surpresa, de olhos esbugalhados e vista turva. Não fala. Não se defende. Não protesta inocência. O rapaz aproxima-se e fita-a longamente. Não consegue falar. Depois, vai sentar-se no banco vazio, ainda quente da quentura de seu Felício. Apoia os cotovelos nas pernas e comprime as têmporas com as mãos suadas. As labaredas do fogão recortam o perfil de ambos na parede escura da cozinha. É um símbolo: o claro-escuro de uma vida em transição… A face morena do rapaz, iluminada pelas chamas, banha-se de lágrimas, enquanto Josefina, acabrunhada, vem sentar-se a seu lado, resignada, melancólica. Não se defende ainda. Não protesta inocência. Nada explica. Baixa a cabeça e espera. As achas da lenha estalam no fogão e expelem fagulhas e fumaça. Lá fora, o mesmo grunhir de porcos gordos e coaxar de rãs vadias. — Bamo imbora? — Bamo!

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No dia seguinte, Zico Ferreira untou de sebo “chumaços” do carro e passou silencioso pela fazenda Candelária. — Uei, não é que a boiada de seu Zico ta ficando boa mermo! — comentaram os “camaradas” ingênuos. O carreiro não atravessou a várzea trepado no chedeiro nem procurou na janela vazia da casa senhorial a figura bonita de Lisinha Junqueira. Embebia-se-lhe — isso sim — a imaginação num mundo novo: — pensava partir para sempre, em busca de uma vida feliz e venturosa. Iria para uma terra longínqua, onde ninguém o conhecesse, em cujo meio se integraria de maneira que nunca fosse encontrado pelos moradores do seu bairro. Trabalharia bastante, ao sol e à chuva, e quando chegasse à casa, molhado ou suarento, mataria a canseira nos braços de Josefina e receberia nos seus beijos a coragem e a força para a trabalheira do dia seguinte…

Taramela

Egídio Taramela aparecera em Rio das Antas sem que ninguém lhe pedisse a identidade. Quando a população local percebeu o intruso, já estava ele aboletado no velho quiosque escondido atrás da igreja, com o teto seguro, decerto, para todo o sempre. Não estendeu a mão à caridade nem bateu às portas de quem quer que fosse à busca de agasalho e pão. A tábua dura da morada encardida bastava ao mísero forasteiro, mais desejoso talvez de uma aparente paz de espírito do que de refrigério para os males do corpo… É possível que, se lhe fosse perguntado, desse o nome certo e verdadeiro, um nome cheirando a fidalguia antiga; mas a arraia-miúda de Rio das Antas, sempre avisada na escolha das alcunhas, arranjou-lhe depressa o esquisito sobrenome. Egídio, resignado ou indiferente, preferiu a alcunha ao sobrenome verdadeiro, como se relegasse a eterno esquecimento os laços de família. De igual maneira, não se lhe indagou donde vinha nem para onde ia. Daqui ou dali, de Parati ou da estranja, era mesmo sem eira nem beira. Se não ganhou desde logo um olhar de piedade, também ninguém cuidou de guardar melhor suas portas, temendo o vagabundo. O ar simples e inofensivo, que apresentava, punha-o a coberto de qualquer suspeita. Por isso mesmo, dentro em pouco, Egídio Taramela tornou-se conhecido e estimado. Conversador amável, instruído, sabia bater a língua nos dentes e desfiar histórias compridas e anedotas bem urdidas. Magro, alto, quase esquelético, roupa suja e rostida, sapatos evidentemente herdados de pés maiores, barba rala — era mesmo figura desajeitada e feia. Os bigodes duros e grisalhos, caídos sobre a boca murcha, faziam boa parelha aos dois caninos brancos, derradeiros exemplares da dentadura cedo apodrecida. Nada disso, entretanto, foi motivo capaz de segregá-lo da convivência local. Também, Rio das Antas era pouco exigente em matéria de seleção: não indagava pela linhagem de ninguém, e tanto lhe frequentavam os salões de baile gente de coturno alto como indivíduos de cor e vida duvidosas… Egídio Taramela não participou, é claro, das quadrilhas arrelientas marcadas pelo Joaquim Lerê, mas logrou merecer palestras dos maiorais da terra. Gostavam das piadas do “seu” Egídio e do ar dogmático que ele sabia pôr em suas opiniões. Nessa hora, Egídio Taramela transfigurava-se e assumia atitude importante. A voz esganiçada adquiria colorido estranho, e a linguagem mais ou menos polida denunciava nele um começo de vida bem diferente da que levava. Quando a história era complicada e a veracidade posta em dúvida, Egídio Taramela suspendia o lábio inferior e trazia o bigode hirsuto para dentro da boca, chupando-o desajeitadamente. Era o sinal de todos conhecido: — Qual, seu Egídio! Isso é conversa fiada! Taramela pigarreava e erguia o cigarro de palha à ponta do canino… E prosseguia.

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Se, de começo, o aparecimento do forasteiro não incomodou a população simples de Rio das Antas, à medida que o tempo passava e que Taramela se integrava vitorioso no meio social, a curiosidade se fazia em torno dele, e por isso mesmo, aguçava-se também o cochicho das comadres. Porque, de fato, a vida e a personalidade de Egídio Taramela eram mesmo de aguçar comentários e sofismas. Não mendigava. Não incomodava ninguém. Ninguém, por seu turno, lhe oferecia um prato de comida. Jamais se lhe pôs em dúvida a honestidade. Talvez lhe percebessem, isso sim, uns laivos de orgulho recalcado: não trabalhava e nada pedia. Contentava-se com o teto que a passividade da gente local lhe oferecera. Só. O disse me disse foi, então, tecendo a história inverossímil de sua vida pregressa e estabelecendo-lhe também laços de íntimo parentesco com o vigário da paróquia. Que ele recebia das mãos do padre alguma ajuda, ninguém mais tarde, pôs em dúvida. Mas, cousa alguma de suspeito havia nisso: o padre era de fato um mão-aberta, mormente para os pobres. Derramava nas mãos dos necessitados tudo quanto recebia. Assim, também as sobras de comida que iam para o estômago debilitado de Taramela vinham da excessiva generosidade que o santo vigário distribuía de olhos fechados. Nada de mais nisso. E o mistério continuava então desafiando os cuidados das solteironas e dos comentários da botica. A dedução e o sofisma enredavam a cada passo teias caprichosas, ajeitadas ora pela relativa instrução que se lhe percebia, ora pelas indicações leves e disfarçadas que sua conversa às vezes deixava escapar. Nascera — dizia-se — numa cidade amena do litoral fluminense… E só! Egídio Taramela, com o andar do tempo, talvez sentisse o isolamento. E o quiosque encardido, queimado de sol e batido pelo tempo, arranjou um novo inquilino. Daí por diante, Jota, perdigueira cor de chocolate, de olhos doces e ossatura à mostra, palmilhava sossegada e mansa as pegadas de seu pobre dono. Por onde andasse ele, lá ia ela abanando a cauda, satisfeita e feliz. Se a palestra costumeira de Taramela, à porta do correio, se espichava — Jota estendia-se-lhe aos pés, atiçava os ouvidos, orelhas empinadas, olhos presos aos olhos do companheiro. Exausta, enrodilhava-se toda, quieta e resignada, fechava as pálpebras sonolentas. O soalho duro do quiosque amassava, depois, os ossos doídos dos seus hóspedes… O prato de comida, dado pelo vigário, era irmãmente, com o sacrifício talvez de Taramela, que se regalava de frutas e cousas fora do gosto habitual da companheira. Não tardou, porém, que maledicência batesse à porta do quiosque humilde e desse à amizade dos inquilinos uma extensão feia e impossível. A arraia-miúda, sobretudo, chicoteava Taramela entre risinhos de escárnio e crítica ferina e má. E alisando o pelo macio da perdigueira, os garotos malcriados murmuravam: — Dona Taramela! Dona Taramela! Egídio ouvia os remoques e, homem superior que era — dizia — não tomava conhecimento do insulto.

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Toda a gente pensou que a morte do vigário modificasse a vida boêmia de Egídio Taramela. — Vamos ver de que ele vai viver agora, comentava-se. E toda a gente viu logo que a modificação foi para melhor. Nesse tempo, o coronel Marciano Ferreira acumulava as funções de chefe político e veterinário. Os seus eleitores, em troca dos votos, traziam-lhe cavalos “inteiros”, para o canivete afiado, na certeza de que a esterilização se fazia sem fracasso nem perigo. Egídio Taramela acomodou-se então às funções de ajudante-mor do coronel nas intervenções cirúrgicas, dia a dia praticadas espalhafatosamente em plena praça da Matriz. Assentava fortemente o “tapa” sobre os olhos do cavalo, manietava-lhe, depois, as patas com cuidado e jeito; derribava-lhe ainda com perícia e habilidade, reduzindo-o a impotência. Em seguida, tomava a bacia de água cor de leite, impregnada de creolina, e aguardava a manobra destra do coronel. Extirpadas as glândulas, entravam em ação o ajudante e a creolina: as cápsulas vazias eram cheias do desinfetante e logo o novo eunuco posto em liberdade. Duas coisas Taramela obtinha então: alguns vinténs para a magra refeição diária e a garantia de que Jota, por igual, teria a sua refeição. Porque a perdigueira era considerada auxiliar precioso do coronel cirurgião: enquanto o cavalo estrebuchava e suava, gemia e raspava o chão com as patas, Jota estava alerta, sem pestanejar, orelhas em pé, estrategicamente sentada sobre as patas traseiras. Daquele jeito, acompanhava a marcha operatória, tempo por tempo, até que, feita a ablação, as glândulas lhe iam certeiras às goelas famélicas. Por esse tempo, não se falava em opoterapia…

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O ramerrão de Rio das Antas garantiu aos inquilinos do velho quiosque, anos a fio, o sossego e a paz. Taramela fez-se elemento indispensável à vida quieta da cidade e manteve sem concorrentes o posto de cirurgião-ajudante conquistado em praça pública. Os parcos vinténs ganhos poupavam-lhe o incômodo de receber as sobras de comida de quem quer que fosse, e Jota, além das glândulas equinas, havia-se bem e honestamente nas cozinhas amigas. A curiosidade malsã das comadres e do balcão da botica estava, com o passar do tempo, morta e insatisfeita, tão certo era que dos lábios descorados do misterioso adventício ninguém arrancava mesmo qualquer esclarecimento acerca de seu passado. A genealogia de Taramela perdia-se, para ele próprio, nas trevas do esquecimento.

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Certo dia a cidade amanheceu com a notícia de que Taramela fora encontrado morto. — Uma síncope cardíaca, afirmara o douto boticário. Ninguém pôs luto, e a lacuna aberta na sociedade local não foi do molde à que o necrológio passasse do corriqueiro refrão: — Coitado do Taramela! Era mesmo um bom homem… — Coitado, sim! Sem eira nem beira… O sino dobrou a finados à saída do enterro, à custa dos criadores locais… E ninguém, parece, rezou por ele ou lhe lamentou a morte. Ninguém, não: Jota ganiu noites inteiras, em tom triste e tétrico, como se pusesse lágrimas na voz e sentisse dor no coração. A população local esqueceu depressa o nome do inquilino desocupado do velho quiosque. Uma cruz de ferro marcou-lhe a sepultura.

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Aquele “sem eira nem beira”, entretanto, não encontrou eco na consciência do boticário. Quando os conversadores inveterados da botica traziam à baila o nome de Taramela, havia um quê de respeito e admiração na voz do boticário, a ponto de, pouco a pouco, reabrir-se a preocupação das tertúlias em torno do mistério que envolvera aquele homem. Na verdade, ninguém o soube, o boticário, ao examinar o cadáver de Egídio Taramela, topara indicações escritas, bem cosidas às entretelas da roupa velha, de maneira a estabelecer-se-lhe a identidade. O padre não recebera a confissão do mísero inquilino do quiosque abandonado, mas o farmacêutico soubera guardar com discrição e lealdade a história dolorosa que Taramela em vida desejara ficasse morta.

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Chamara-se Egídio Oto e Castro. Nascera mesmo em cidade amena do litoral fluminense. Crescera olhando o mar e invejando-lhe a grandeza. O pai, rico comerciante da praça, escolhera-lhe logo a carreira e preparara-lhe também a vocação. — Será padre! Egídio não discordou. Agradava-lhe a missão antevista pelo pai. Seria padre mesmo. o apostolado cristão era grande como a grandeza majestosa daquele mar que ele invejava e queria. O Seminário o acolheu cedo, e Egídio Oto e Castro identificou-se logo à vida boa e santa da instituição. Nada lhe arredava o espírito para fora da quietude monástica da casa. Absorvia-o o estudo e a certeza de que enveredara pelo caminho traçado pela inspiração divina. Se as férias lhe interrompiam a faina do estudo, na casa paterna não levava vida diferente. Dir-se-ia que a obrigação da leitura era nele hábito formado. Ia da casa para a igreja: aos pés do altar, o jovem seminarista encontrava a alegria que os rapazes da cidade buscavam em coisas diferentes. E assim ia Egídio Oto e Castro preparando com inteligência e satisfação íntima a estrada que o levaria, sem dúvida, à cura das almas.

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Ao concluir os estudos secundários, rapaz feito, a propensão para o sacerdócio era-lhe decidida e profunda, como se o Senhor lhe tivesse instilado na alma aquela graça que fazia do padre um eleito escolhido para o santo mister. Mas, sem que ninguém o previsse, quebrou-se de repente aquela propensão para a vinha do Senhor. Egídio Oto e Castro, já iniciando os estudos filosóficos, recusou-se a retornar ao Seminário. — Por quê? Logo se soube: — prendera-se aos olhos da prima Luiza com quem — disse-se depois — ia casar-se. Coisa do diabo! O certo era que a janela do quarto do seminarista encontrava sempre aberta a janela encantadora da vizinha. E os olhos lânguidos da prima, da cor azul do mar imenso, estenderam o fio que ia reter ali a alma incauta e boa do jovem inexperiente. O pai fez barulho. Arreliou. Esbravejou. Ameaçou céus e terras. Cortou cerce as relações de amizade à família do vizinho. Mas o amor é sempre cego e arbitrário. Egídio preferiu os braços da prima ao celibato imposto pela Igreja. Casou-se e procurou emprego. — Serei mestre-escola. É essa a minha vocação, eu já percebia… Estendeu bancos compridos em torno da mesa, saiu de porta em porta à cata de alunos e iniciou-se no magistério. Teve logo a sala cheia e a reputação de professor firmando-se no conceito público. E enquanto a meninada soletrava em voz alta a carta do bê-á-bá e ensurdecia a vizinhança cantando a tabuada — Egídio Oto e Castro dividia-se entre a escola e o lar, afeiçoado a uma e a outro, como se ambos lhe fossem, por igual, a razão de ser da existência. A sala ficava às vezes entregue ao decurião ou a si própria, e o mestre esquecia-se no lar, ao lado da jovem esposa, cativo de seus braços. Outras vezes, ia ela, séria e sorrateira, sentar-se nos bancos compridos junto à mesa grande, menina entre os meninos, envolvendo o mestre na doce claridade dos olhos penetrantes, azuis como aquele mar que ele tanto amara na infância. A classe, por causa disso, imergia-se em silêncio e a lição entrava pela tarde adentro, esquecida do relógio, até que os alunos, cansados, cabeceavam de sono. — Seu mestre, deixa eu ir embora… Só então Egídio Oto e Castro, banhado de felicidade, apercebia-se do crepúsculo que chegava… Luiza ria-se gostosamente e aconchegava-o insidiosa e travessa ao colo perfumado. E saíam, então, ternamente abraçados, passo a passo, tagarelando, para as doçuras do lar. Nada turvava a paz tranquila daquela casa, decerto abençoada. A morte dos pais, então empobrecidos, alanceara, é verdade, o espírito do mestre, mas a dor desaparecera ou se diluíra, mercê dos afagos da boa esposa. Egídio estava certo de que fora Deus, e não o diabo, que lhe torcera a vocação sacerdotal. Luiza não fora apenas um obstáculo posto entre ele e o Seminário, mas o anjo do Senhor incumbido de arredá-lo do caminho errado. O anjo do Senhor, sim, porque ela era personificação angelical: bela e boa, simples e pura. Além disso, amava-o tanto…

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A escola melhorava e progredia. A sala, saturada, não permitia novas matrículas. A ação pedagógica do mestre granjeava admiração. Por isso, Egídio Oto e Castro, com a ajuda do promotor e do juiz, abria as portas de um externato, dilatando assim seu programa de ação. Egídio Oto e Castro era então um nome vitorioso.

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Um dia o mestre recebe um bilhete. Nem soube como lhe foi às mãos. Gente inimiga, decerto, lhe pusera entre os papéis. Provavelmente uma intriga. Uma calúnia impiedosa, era quase certo. Luiza era tão boa, tão pura… Por que havia de receber o Juca Alfaiate sob o mesmo cortinado que lhes embalara os primeiros sonhos conjugais? Não, não era possível. Mas o mestre não conseguiu concluir a lição: saiu às pressas quase de carreira, preocupado, saltando e pulando, cabelos revoltos, suado e arquejante. Ninguém o viu assim, mercê de Deus! Ao penetrar na casa, com o coração aos pulos, trêmulo, nervoso, pé ante pé, de manso, foi surpreender a esposa, a boa companheira, descuidada e simples, no trato costumeiro do crochê e dos bordados. Que felicidade, santo Deus, ao vê-la assim! Como era pura e simples! Beijou-a então sofregamente, ternamente, agradecendo-lhe, em silêncio, a certeza da fidelidade. E saiu, implorando perdão a Deus pelo pecado cometido. Rasgou depois, em mil pedaços, o bilhete mentiroso, não dormindo sobre o incidente. E assim devia ser: — Luiza cobria-o de carinho e prendia-o cada vez mais às doçuras do lar…

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Nunca mais o professor encontrou bilhetes mentirosos entre os papéis de sua mesa. Nem se lembrou jamais de que seu lar pudesse ser alvo de calúnias e intrigas. Não. Mas, findo o expediente do externato, Egídio Oto de Castro, certo dia, não encontrou a esposa em casa. Procurou-a inutilmente, de começo, apenas murmurando-lhe o nome, certo de que, detrás de uma porta, Luiza lhe atiraria os braços e o cobriria de beijos. Bateu todos os cantos. Varejou o quintal. Nada! Entrou a chamá-la em tom alto, gritando, agitado e nervoso. Nada! Saiu, depois de casa em casa, perguntando por ela, indagando, investigando, perquirindo. Desesperado, cabelos revoltos, pálido e tremulo, pela rua afora, sem destino, pressentia-a morta, à custa da perversidade — quem sabia? — de algum inimigo ou louco. Foi quando um garoto indiscreto lhe segredou: — Pois o senhor não sabe, seu mestre? Ele não sabia, não. Não sabia… — Pois dona Luiza fugiu com o Juca Alfaiate…

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Findava aí a história colhida pelo boticário nas entretelas da roupa velha de Taramela. História recomposta aqui e ali, com cuidados extremos, tão rostidos e esfacelados estavam aqueles apontamentos. E Egídio Oto e Castro repousa, agora, no cemitério rústico de Rio das Antas, sem lápides e sem flores. Perdido entre as sepulturas pobres, o antigo professor é ali o que foi no derradeiro quartel de sua vida: — simplesmente, o Taramela, sem eira nem beira… ? INDICE Prefácio Zé Batoque Uma aventura singular Contenda sertaneja O preço da liberdade A revelação Um homem impassível A vingança do acadêmico Gil Barreto Cambuí Os fueiros Taramela

Belo Horizonte Edições Pindorama 1940 ?