Vital Brazil

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Discurso de posse do acadêmico Túlio Tadeu Tavares, em 20 de janeiro de 2018, quando ao ocupar a Cadeira nº 40, faz homenagem ao patrono Vital Brazil, mineiro da Campanha


1917: nas dobras das montanhas de Itapira-SP, Menotti del Picchia conta que Roque, o feiticeiro, com mandingas, rezas e benzeduras, a peçonha da cobra cura.

Primeiro quarto do século XX: o Brasil e o mundo contabilizam milhares de óbitos por intoxicações decorrentes de acidentes ofídicos urbanos e rurais.

1885, São Paulo: a garoa que cai é fina, fria, cortante, dolorida, cotidiana, pontual. Numa sala de aula, um jovem, furioso de determinação, entusiasmo e inquietação, sustenta um sonho: ser médico. Médico para salvar vidas humanas. Para arrostar e aniquilar a dor. Exorcizar a doença. É Vital Brazil. Aquele que, décadas depois, cientista absoluto, estremece a comunidade médica: apresenta ao Brasil e ao mundo um soro específico contra a intoxicação por veneno de cobra. Vital Brazil Mineiro da Campanha, cientista-herói, benfeitor da humanidade, é o patrono da Cadeira número 40 da Academia Cambuiense de Letras, Artes e Ciências.

Senhor Presidente da Academia Cambuiense de Letras, Flávio Roberto Carvalho Ferraz,

Diretores da Academia,

Confrades acadêmicos,

Autoridades,

Meus familiares,

Senhoras, senhores.


Academia, nos dias atuais, é palavra multifacetada, plúrima. Designa agremiações científicas, literárias, esportivas, artísticas, instituições de ensino. Vem do grego antigo, hekademia. Evolui para academia, uma alusão a Academo, herói ateniense decisivo no resgate de Helena, raptada por Teseu. Em 387 a.C., Platão abre uma escola no de Parque de Academo, uma extensa área arborizada, adornada com belas esculturas, no subúrbio de Atenas, dedicada à memória do herói. A escola de Platão passa a ser chamada de Academia e entra para a história como a célebre “Academia de Atenas”. É a primeira universidade do globo. Um centro de estudos de filosofia, matemática, astronomia e biologia. Academias são criadas ao longo do tempo, nas mais diversas frentes da atividade humana. Dentre as de letras, a Academia Francesa, de 1634, é paradigmal. Inspira a nossa Academia Brasileira de Letras, de 1897, num movimento liderado por Machado de Assis. O objeto da Academia Brasileira de Letras está restrito ao culto da língua e da literatura nacional. O objeto da Academia Cambuiense é mais amplo que o da brasileira. Além de cultuar a língua e a literatura nacional, cultua também as atividades científicas, a produção artística, a preservação histórica e ambiental. Tal qual a Francesa e a Brasileira, a Academia Cambuiense é composta de quarenta membros. Cada um ocupa uma de suas cadeiras, numeradas de um a quarenta. Assumo, hoje, assombrado, o assento da cadeira “40”, como uma convocação, primeiramente. Devo, nos termos do art. 57 do Estatuto da Academia, abordar a vida e a obra do patrono da cadeira: Vital Brazil. Em 28 de abril de 1865, em Campanha, Sul de Minas Gerais, nasce Vital Brazil Mineiro da Campanha. Vital, por nascer no dia de São Vital. Brazil , Mineiro e Campanha são os locais do seu nascimento. Vital Brazil é filho de José Manoel dos Santos Pereira Junior e Mariana Carolina Pereira de Magalhães, casados em 1860. Além de Vital Brazil, o casal tem mais sete filhos. Na infância, Vital Brazil mora em Campanha, Itajubá, Caldas e Guaxupé. Estuda, nesse período, em bons colégios; tem bons professores. É inteligente, excelente aluno. Ainda menino manifesta o desejo de ser médico. O pai de Vital Brazil é inquieto, ativo. Caixeiro viajante, tropeiro, dono de cartório, chega a ser homem de posses. No entanto, é viciado em jogo de apostas. Em Caldas, metido em jogatina, perde tudo, inclusive o cartório. Em 1880, financeiramente falido, em busca de melhores condições de vida, leva a família para São Paulo-Capital. Em São Paulo, Vital Brazil, com 15 anos de idade, consegue emprego de condutor de bonde. Alimenta fervorosamente o sonho de ser médico. Sabe da necessidade de encontrar meios, ou seja, estudo e recurso financeiro, para entrar na Faculdade de Medicina, na época apenas duas: uma no Rio de Janeiro – a pretendida –, e outra na Bahia. Não conta com o pai, sempre endividado em jogo. Depois do emprego de condutor de bonde, Vital consegue trabalho e estudo no colégio protestante Morton. Trabalha como varredor dos pátios e das salas do colégio, e estuda para ser ministro evangélico. Sem vocação para a carreira religiosa, negocia com o proprietário do colégio dar aulas em troca de continuar estudando. Com isso, completa a grade mínima de estudos para entrar na Faculdade de Medicina. Em 1885, Vital Brazil parte, sozinho, para o Rio de Janeiro. Não consegue emprego na capital do Império. Sem meios de manter-se, volta para São Paulo e consegue emprego numa empresa de engenharia. Em 1886, com pequena reserva financeira, retorna ao Rio de Janeiro. Hospeda-se na casa de um parente. Depois de muita procura, consegue emprego de professor numa escola. Com meios próprios de sobreviver na capital do Império, matricula-se, enfim, na Faculdade de Medicina. Durante o curso, também trabalha como escrevente de polícia. Participa das campanhas abolicionista e republicana. Na conclusão do curso, propõe-se a pesquisar a Pluméria, planta da qual poderia ser produzido um remédio contra o veneno de serpentes. Desaconselhado pelo seu professor, apresenta um trabalho sobre a função do baço. Forma-se em 1892. Formado, Vital retorna a São Paulo. Casa-se com Maria da Conceição Philipina de Magalhães. Trabalha no Serviço Sanitário do Estado. Lidera, por todo o Estado, vitoriosas campanhas de combate à febre amarela, cólera, malária, peste bubônica. Nas campanhas contra a febre amarela e a peste bubônica, contrai as doenças que combate, quase morre. Em 1895, morando em Botucatu, interior de São Paulo, impressiona-se com o grande número de óbitos ocasionados por veneno de cobra. Inicia pesquisas com o intuito de descobrir um tratamento adequado para o problema. Em 1897, volta para São Paulo. Busca melhores condições para desenvolver suas pesquisas. Descobre, a partir do soro do cientista francês, Calmette, desenvolvido em 1894, que as diversas toxinas das cobras peçonhentas devem ser combatidas especificamente. Assim, o veneno da cascavel deve ser combatido com o soro feito do veneno da cascavel; o da jararaca, com o da jararaca; o da cobra-coral, com o soro obtido da mesma espécie. Essa descoberta, pioneira no mundo científico, revoluciona o tratamento de acidentes ofídicos, letais, até então: cada espécie de toxina ofídica deve ser combatida com um anticorpo específico. Esse é o maior legado de Vital Brazil. Em 1899, a partir de um velho estábulo da Fazenda Butantã, cria o Instituto Butantã. Em 1917, obtém, em seu nome, a patente do soro antiofídico. Decide, imediatamente, doá-la ao governo brasileiro. Em 1919, retorna ao Rio de Janeiro e, em Niterói, a partir de uma rústica olaria, cria o Instituto Vital Brazil. No plano familiar, em 1913, Vital fica viúvo de Maria da Conceição, com quem tem nove filhos. Em 1920, aos 55 anos, no Rio de Janeiro, casa-se com Dinah Carneiro Viana, com quem tem mais nove filhos. Em 8 de maio de 1950, Vital Brazil falece no Rio de Janeiro, aos 85 anos, vítima de uremia. Nos Institutos Butantã e Vital Brazil, o nome Vital Brazil é coisa sagrada, res sacra. No Brasil inteiro, ruas, avenidas e praças de várias cidades levam o nome de Vital Brazil. A casa do seu nascimento, em Campanha, hoje é o Museu Vital Brazil. Justíssimas homenagens! Os dois institutos criados por Vital Brazil são referências universais na produção de medicamentos e na formação de pesquisadores. Juntos, têm capacidade de produzir mais de um milhão de ampolas de soro antiveneno por ano. A picada de cobra, em pleno século XXI, continua sendo uma causa relevante de morte. Recentemente, foi incluída na Lista de Doenças Tropicais Negligenciadas da OMS. Aproximadamente cinco milhões de pessoas são picadas por cobras peçonhentas, por ano, no mundo. São cerca de 10 picadas por minuto. Desse universo, 100 mil picadas são fatais, e 400 mil levam a desfigurações ou a deficiências permanentes. No Brasil ocorrem de 19 a 22 mil acidentes ofídicos por ano. De 85 a 100 são fatais.

Sobre ser escolhido para ocupar a Cadeira número 40 da ACLAC, confesso que vivo um momento histórico, mágico, misterioso. A notícia veio a mim na manhã de 13 de setembro de 2017, por meio de uma comunicação eletrônica do meu queridíssimo amigo e ex-colega de ginásio, Flávio Ferraz, Presidente da ACLAC. Impactado pelo teor da mensagem, exclamo: “Meu Deus, Flávio, que susto! Fiquei extremamente surpreso com a notícia. (...) Você quase me mata do coração.” E o Flávio, brincando, com leveza, complementa: “Calma! Não vá morrer de véspera. (...) Espere pela imunidade total...” Estar nesta casa, ocupada por quatro ex-colegas de estudo, o Flávio, a Regina Mara, o João Marcos e o Luciano Lambert, duas queridíssimas ex-professoras, a Zélia Finamor e a Maria Izabel Duarte Bueno, e mais 34 personalidades tão significativas para Cambuí e adjacências, é uma honraria ímpar. De público, deixo o meu agradecimento aos membros da ACLAC pela generosa escolha do meu nome. Muito obrigado pela confiança em minha pessoa. Muito obrigado pelo chamamento. Muito obrigado pela calorosa hospitalidade. Estou exultante, espantado. E esse estado de exultação e espanto, leva-me àquela situação paradoxal retratada por Ferreira Gullar em “Traduzir-se”: “Uma parte de mim pesa, pondera; Outra parte delira. (...) Uma parte de mim é permanente; Outra parte se sabe de repente. ...”

Dedico esta fala à memória das vítimas de acidentes ofídicos que tombaram. Perderam suas vidas e deixaram um vácuo de dor, de irreparáveis baixas, saudades eternas. Tragédias tais são evitáveis, hoje. Muito obrigado, Vital Brazil! XXX