A Enchente, João Batista Teixeira

De Wiki Cambuí
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A tarde daquele dia começou abafada. O sol a dardejar labaredas de luz e calor sobre a cidade, pela grotas e serras, jogava moleza e entorpecimento em tudo. Não se ouvia burburinho de vida pelas ruas e praças. O ribeirão das Antas caminhava sonolento em seu leito estreito.

Do meio para o fim da tarde, as nuvens chegaram ameaçadoras. Na direção do Canguava, o céu estava tapado de nuvens grossas, pesadas, agitadas. Mais um tempo e as nuvens cobriram os céus de Cambuí. De tão escuro regulava ser umas seis da tarde, embora o relógio da igreja só marcasse não mais que quatro.

Do lado da Serra dos Crentes, uma cortina branca anunciava o rolar das águas. Não deu meia hora e a borrasca chegou. Inicialmente, bulhenta de trovões a ribombar, parecendo o arrastar pesado de mesas no assoalho do céu. Em seguida, amainou, mas se sustentou pelo resto da tarde, entrando noite adentro. As goteiras tamborilaram a noite toda na sarjeta estreita. Só de madrugada a chuva foi afinando persistindo até o dia seguinte.

Ainda pela manhã, um chuvisco fino descia das nuvens, agora transformada em uma única cobertura cinzenta a tomar toda a abóboda celeste. Ao chegar à janela, após lavar o rosto, fiquei estatelado sem acreditar no que via. Toda a várzea ao lado da Fernão Dias era um mar só, de águas agitadas e barrentas. A enchente era uma das maiores que jamais tinha visto parecida. Imediatamente, corri para a rua para saber das novidades. Novamente, não pude acreditar. A água havia subido tanto que ultrapassara a rodovia ainda em construção e alcançara o casinholo-bar do Zé Quintino.

Muitas pessoas ali estavam a prestar o devido socorro ao casal de velhos, que foi expulso da cama ainda de madrugada pelas águas a invadir os aposentos. Em meio à correnteza, os parcos pertences eram resgatados na medida do possível. Do meio da confusão, alguém gritou para o companheiro mais distante.

- Cerca aí! É uma panela!

- Panela esmartada !?

- Seja lá o que for, cerque !

- É o penico !

- Que seja penico, cerque, também é de serventia.

A ajuda vinha de diversas formas. Uns davam amparo ao casal de velhinhos, outros enfrentavam a correnteza a pescar de mão os apetrechos. E muitos distribuíam seus palpites reunidos em grande assistência posicionados em local bem enxuto e seguro. Um dos mais dedicados era o Antonio Geordino. Rapagão ainda, mas esforçado. Com seu inseparável chapéu de abas largas avançou na correnteza de roupa e tudo.

Do outro lado da rodovia, a enchente alcançava a esquina da Avenida do Carmo com a Governador Valadares. No meio da confusão alguém, em altos brados, clamou por uma canoa.

- Canoa ?! Onde vai achá canoa agora ?!

- O Arlindo, o menino do Joaquim Carias tem uma!

Nisso alguém apontou na direção da velha ponte que conectava a jovem Vila do Matadouro ao corpo principal da cidade. O Arlindo já vinha remando com dificuldades em sua velha canoa de tábuas rústicas. Ao chegar pela frente do bar, foi ancorada num mourão de amarrar cavalo e aí a coisa andou. Os mantimentos e miudezas colocados sobre o balcão foram aos poucos transportados para a canoa que, uma vez cheia, era puxada por longas cordas até próximo do antigo armazém do Adolfo Jonas.

As águas barrentas rolaram ligeiras durante o dia inteiro, tomando toda a extensão da vargem. Desde a antiga fazenda do Dito Eugênio na direção do Braço das Antas até as terras do Mané Antuninho, era um mar só. Com o ribeirão a transbordar, a festa da rapaziada era completa, várias canoas surgiam de suas tocas para navegar errante, repleta de aventureiros de ocasião. Mais para o fim da tarde, grupos de moleques mais afoitos, despencavam do parapeito da velha ponte em direção ao que se supunha ser o meio do rio, já que apenas o senso de direção os orientava. O leito estreito do velho ribeirão havia desaparecido por completo.

No dia seguinte, o estrago era mais visível. As plantações de arroz haviam sido arrasadas pela correnteza, nem uma planta sobrara em pé. O Ribeirão das Antas, antes tímido, agora regurgitava pelas margens tortuosas, onde a capituva indicava apenas a direção da descida. Em vários trechos, principalmente aqueles mais largos e de águas mais calmas, moleques e rapazotes se aglomeravam em uma algazarra espontânea, a deliciar-se com os mergulhos e braçadas incansáveis.

Após alguns dias, com o ribeirão retornando ao antigo leito, pequenas lagoas se formavam, principalmente nas valas criadas pela retirada da argila pelas olarias. Nesses locais, as rãs e as traíras iriam se multiplicar prolificamente, para deleite dos caçadores e pescadores futuros.

Após os períodos de enchente, dezenas de pescadores ocasionais preparavam sua tralha de pesca, que consistia pouco mais do que uma vara de bambu fina, uma latinha de minhocas e uma fieira de arame liso. Os mais afortunados ou aqueles com uma dose maior de capricho adquiriam suas varas de cana da Índia na loja do Seu Marcos, ao lado da antiga loja do Vicente Cruz, sendo a fieira substituída por um bem trabalhado jacazinho de boca estreita, obra prima do João Paió.

Ainda ouço com meus ouvidos de criança o coaxar descompassado das untanhas nas noites cálidas pós enchente. Por estranho que pareça esses sons guturais me acalentavam as distantes noites de sono da minha infância. Num piscar de olhos, transporto-me no tempo e no espaço e vejo a minha meninice a se desenrolar calmamente no debulhar sossegado dos dias de outrora.

João Batista Teixeira ocupa a cadeira número 4 da ACLAC, patrono Bento Bueno de Morais.