João Belisário, sua vida e seus crimes

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José dos Reis, patrono da ACLAC

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Prefácio

O Maestro José dos Reis

Como se guarda uma relíquia num sarcófago santo, o joanopolense guarda, no fundo do seu coração, a lembrança dos seus grandes homens (José dos Reis, 1958).

Escrever sobre este homem para mim é um grande orgulho e também um dever, pelo fato de ter dedicado parte de sua vida ao jornalismo e a história, tal qual faço hoje, além de dedicar-se a música, um dos seus grandes feitos. Porém, não é tarefa fácil tendo em vista que o mesmo era um homem das letras, ilustrado e grande conhecedor do nosso idioma nacional, portanto, ficam aqui minhas humildes desculpas por algumas falhas.

José dos Reis nasceu em Cambuí, Estado de Minas Gerais, no dia 21 de setembro de 1899, filho de Jesuíno dos Reis e Ricardina Alves de Moraes. Estudou música e tornou-se pistonista. No ano de 1936, a convite do então prefeito de Joanópolis Antônio Fernandes Cardoso, passou a residir em nossa querida cidade, a fim de ministrar aulas de música e formar uma banda municipal. Entre seus alunos e futuros grandes amigos destacaram-se Francisco Toledano Sanches e João Toledano Sanches que mais tarde também se tornaria maestro.

Neste período, possuindo Joanópolis clubes sociais ligados aos partidos políticos, José dos Reis passa a ser o maestro da “Corporação Musical Nove de Julho”, pertencente ao clube PC (Partido Constitucionalista) que tinha como compositor Olympio Costa. Enquanto que o clube do PRP (Partido Republicano Paulista) manteve sua banda sob o comando do Maestro João Francisco de Paula. A rivalidade entre ambas proporcionava belíssimos espetáculos em nosso coreto, bem como bons e animados bailes. No entanto no ano de 1938 para a alegria de todos ambas se uniram formando uma das mais belas bandas de Joanópolis, que antecederia a criação da grande “Lira Joanopolense”, em 1951. No início residindo em Joanópolis, passou a exercer a profissão de barbeiro durante o dia para completar a renda como professor de música, cuja atividade desenvolvia à noite. Mais tarde passou a trabalhar na Prefeitura Municipal, na área de finanças, onde também se destacou por sua competência e seu caráter.

Apaixonado pela música, ganhou um concurso musical, tendo seu maxixe “Maluco” incluído no disco “Mozart e sua bandinha: onde canta o sabiá”, gravado pela RCA Victor no ano de 1958.

Em meados de março de 1958 fundou o Nosso Jornal, um dos melhores órgãos de imprensa de toda história joanopolense, exímio jornalista, cuidadoso revisor, bom redator e grande cronista. Ao Nosso Jornal devemos muito da divulgação e perpetuação da nossa história. Apesar de toda dificuldade financeira conseguiu manter este importante órgão da imprensa até o ano de 1963. No jornalismo ainda foi colaborador do O Piracaieanse e a A Gazeta de Cambuí, com crônicas, reportagens, contos e poesia.

Ainda nas letras escreveu o livro João Belisário, sua vida e seus crimes, publicado em 1955, contando a saga deste matador de aluguel da primeira metade do século passado, na região sul-mineira e zona Bragantina, bem como o conto “Desafortunados” - livreto publicado em 1950 - e o livro “Miscelânea” que, infelizmente, não teve a oportunidade de publicar.

Esse grande mestre e profundo colaborador - em todos os sentidos - do município de Joanópolis casou-se em 26 de novembro de 1921, em Cambuí, Minas Gerais, com D. Maria Amélia dos Santos (depois conhecida por Maria dos Santos Reis), com quem teve nove filhos: Jabes, Nadir, Jercy, Jessé, Naide, Nereide, Antônia, Jader e Nilza, sendo estes dois últimos naturais de Joanópolis e os demais da cidade de Cambuí, onde residia. Faleceu em 15 de abril de 1969, aos setenta anos de idade, sendo até hoje lembrado com carinho e admiração pelo nosso povo.

Como as palavras têm poder, não poderia deixar de citar um trecho da matéria do jornal Segunda Juventude, do ano de 1972, escrito por Alfredo Ênio Duarte: Algum dia, quando contemplarmos uma rua ou avenida de Joanópolis, em cuja placa figure o nome de José dos Reis, reverenciaremos o jornalista, o escritor, o maestro, o amante da língua portuguesa e o mais autêntico joanopolense de outras terras. Décadas mais tarde, uma das ruas de nossa cidade passou a ostentar o nome de Maestro José dos Reis. E a biblioteca da Escola Vicente Camargo Fonseca, desde 24 de junho de 1996, o tem por patrono.

A José dos Reis e família, nosso eterno agradecimento.

Valter Cassalho

Introdução

A história que vamos contar através das linhas deste folheto é a narração pura e simples da verdade que conhecemos sobre a vida de João Batista Marques, por alcunha João Belisário, o cambuiense que trinta anos atrás era o homem mais temido em toda a região sul mineira. Queremos apenas a verdade sem fugirmos à realidade dos fatos. As fantasias criadas em torno do seu nome ficam para outra oportunidade, para outra ocasião se não nos faltar tempo para historiá-las.

Outra coisa que queremos dizer aos que pretendam folhear este opúsculo é que não temos nenhum contato com as letras, faltando-nos por isso os conhecimentos essenciais para produzirmos obra melhor. Daí nosso antecipado pedido de desculpas aos que nos queiram ler, prevenindo-os de que o nosso desejo ao transportar para o papel os principais acontecimentos ligados à vida do célebre criminoso João Batista Marques, foi apenas o de narrarmos, com fidelidade, os fatos que pessoalmente presenciamos no decorrer da sua vida sempre agitada.

Se tivéssemos cultura faríamos obra melhor, ampliada, mas os nossos conhecimentos se limitam aos adquiridos em três anos nos bancos de um velho Grupo Escolar, na ocasião sob a direção do bondoso professor Maximiano José de Brito Lambert. Que o amigo feche os olhos aos gatos e gatinhos que neste livrete encontrar. É o nosso pedido.

Joanópolis, setembro de 1955.

Capítulo I

Como veio à luz do dia na cidade de Cambuí aquele que, com o nome de João Belisário, por muitos anos, implantou o medo, o pânico e o terror em quase toda a zona sul mineira, e como praticara o seu primeiro crime assassinando o seu padrasto e pai adotivo José Inácio Antônio Silvino, Dioguinho, Lampião, Aníbal Vieira, Cabo Verde, Gregório Bispo e tantos outros valentões deixaram seus nomes ligados à história criminal de nossa pátria como manchas negras a empanarem o brilho dos feitos heróicos dos nossos grandes homens. Como Antônio Silvino, Gregório Bispo ou Aníbal Vieira, João Batista Marques (João Belisário) tem também seu nome ligado não à história de nossa pátria, mas à história da pacata e hospitaleira cidade de Cambuí, no sul de Minas, onde, pela primeira vez, abriu os olhos para o mundo. Foi no mês de agosto de 1887. Às quatro horas da madrugada daquele dia frio e garoento uma mulher ainda moça, afobadamente, bate com força e insistência à porta da casa nº 18 da rua Silviano Brandão, chamando a parteira Siá Maria Serradeira para que fosse atender a uma parturiente na Cruz do Rosário. Siá Maria, acordando com a voz que a chamava, levanta-se depressa — e sem mesmo lavar o rosto ou as mãos, amarrando o cós da saia, dirige-se imediatamente à casa indicada onde uma mulher muito jovem, gorda e simpática, sente dores atrozes. Siá Maria Serradeira, como as demais parteiras daquele tempo, como medida preliminar para o completo “alívio” da parturiente, tira do pescoço um patuá meio encardido e pede à doente que o coloque sobre o ventre. Ato contínuo, ajoelhada aos pés da cama, reza a Ladainha, o Creio em Deus Padre, a Estrela do Céu e outras orações suplicando a intervenção do Pai Todo Poderoso na délivrance de sua paciente enquanto, pelos quatro cantos do quarto sem forro, ecoam os ais doloridos da pobre mulher. Por entre gemidos e dores, às cinco e pouco da manhã, antes do dia clarear, ouve-se o choro impertinente de um recém-nascido, de cor morena e gordalhudo, que, na pia batismal, vinte dias depois, recebe o nome pacífico de João.

Maria Cassalho, a mãe do garoto, pouco tempo depois de ter dado à luz o pequenino ser, sente seu coração pulsar por Zeca Inácio, o sitiante do bairro dos Vazes, por quem está perdidamente apaixonada. Solteiro, sem compromissos e atraído pela simpática e carinhosa morena, Zeca Inácio se “atrapalha”, tropeça, avança e recua ao mesmo tempo, mas não encontra outro caminho a seguir senão o de esquecer o passado e unir-se à mulher que ama. E assim, com os olhos fitos no futuro, Zeca Inácio e Maria Cassalho casam-se numa quinta-feira de dezembro no altar-mor de Nossa Senhora do Carmo tendo como celebrante o inesquecível padre Caramuru. De temperamento calmo e de coração de ouro, Zeca Inácio ama profundamente a esposa e tem grande afeição pelo garoto que, dia a dia, se torna mais esperto e ativo sob as meiguices da mãe e o olhar terno e carinhoso do padrasto. E assim João foi crescendo até que atinge os dezenove anos de idade. Nessa época enamora-se de uma mocinha do bairro com quem se casa passando a viver contente e feliz, em sua própria casa no sítio de seu padrasto. Protegido por este João Belisário vai economizando alguma coisa até que consegue adquirir um carro com quatro bois que atendem pelos nomes de Malhado, Brinquinho, Brioso e Fumaça, trabalhando os dois primeiros no pé do coice e os outros na guia. Transportando lenha, tijolos, madeiras e cereais, do bairro dos Vazes e suas adjacências para a cidade, João ganha o suficiente para viver honestamente com sua mulher e filhos. Um dia, porém, Tinhoso inventa de meter o bedelho entre padrasto e enteado, entre nora e sogra, fazendo nascer entre eles o ciúme, o despeito, a inveja e o ódio que é cego e não reconhece a razão, resultando daí a premeditação de um crime que seria o início de outros, hediondos e perversos, praticados pela mesma alma negra, sedenta de sangue e destituída de sentimentos, levando a muitos lares, alegres e felizes, o pranto, a dor, o luto, a orfandade e a desgraça, muitas vezes para satisfação exclusiva do instinto maquiavélico de seu autor.

Uma manhã, quando eu ainda estava deitado alguém entra em nossa casa contando a meu pai que no bairro dos Vazes, próximo à capelinha, naquela noite, tinha havido um assassinato, acrescentando: “João Belisário matou Zeca Inácio, o seu pai e protetor.” Garotinho de meus onze para doze anos de idade, não quis saber de prosa, levantando-me e dirigindo-me para fora. A Cadeia Pública ficava no segundo quarteirão à esquerda de nossa casa — e ao sair à rua notei que várias pessoas a ela se dirigiam. Como era natural na minha idade, subi correndo até chegar à cadeia onde estava exposto o cadáver. Muita gente se aglomerava dentro e fora do corpo da guarda, mas, empurrando uns e passando por baixo das pernas de outros, consegui chegar à vasta sala onde se encontrava o corpo da vítima, embrulhado num cobertor de um rosa desbotado e todo manchado de sangue. Zeca Inácio tinha o lado esquerdo do rosto inchado e todo salpicado de sinais indicativos de penetração de chumbo grosso. Fora o povo comentava: “Foi uma morte estúpida e bárbara, sem uma justificativa ou dirimente. Ao escurecer de ontem, quando regressava da cidade em seu cavalinho pinhão, Zeca Inácio recebe, em cheio, no lado esquerdo do rosto, uma formidável carga de chumbo vinda de dentro de sua própria casa. Ao eco do tiro seguiu-se um triste e doloroso ai! enquanto o corpo da vítima, ensanguentado, desprendia-se do animal caindo pesadamente ao solo.” Os comentários fervilhavam sem que uma voz se levantasse em defesa de Belisário.

Dias depois do fato delituoso o criminoso apresenta-se à prisão declarando ter praticado o crime por questões de honra, pois seu padrasto havia faltado com o devido respeito para com sua senhora, sendo então recolhido à Cadeia Pública de Cambuí. Um dia, porém, quando fazia os serviços de faxina, fora da prisão, driblou o guarda Izaque, baixinho e meio sardento, fugindo espetacularmente às oito horas da manhã indo homiziar-se num cafezal, ao alto de uma serra, pertencente a um seu amigo, fazendeiro no bairro denominado Fazenda dos Soares, entre Anhumas e Vargem do Paiol. Depois de um descanso de quase três meses fora do xilindró, João Belisário apresenta-se novamente à prisão para ser submetido a julgamento, alcançando a absolvição pela dirimente da completa perturbação dos sentidos e da inteligência no ato de praticar o crime. Absolvido, Belisário volta ao seu bairro continuando a viver honestamente e como homem trabalhador.

Decorrido um ano após o sensacional julgamento na cidade, corre o boato de que Belisário bate constantemente em sua mãe por ter descoberto ter sido ela a causa que determinou a morte de seu padrasto, pois tudo não passara de intriga e invencionice da velha Maria Cassalho que, fazendo do filho um instrumento de sua maldade, desvencilhara-se facilmente do marido. Pela autoridade policial da comarca foi iniciado processo criminal contra a progenitora de Belisário.

Capítulo II

É misteriosamente assassinado, nas proximidades do povoado dos Vazes, quando à noite dirigia-se para sua residência, o lavrador Joaquim Albino.

Em liberdade e isento de culpa pela morte do padrasto, João Belisário volta à vida normal, costumeira, à frente de sua boiada, transportando lenha, tijolos, mudanças e tudo o que pudesse reverter em defesa do pão nosso de cada dia sem, contudo, poder apagar da lembrança o drama pungente e doloroso que se desenrolara em sua vida quando, com os olhos fitos no futuro, caminhava em busca da felicidade. Por isso sentia-se revoltado ante a realidade dos fatos que o transformava de um bom filho, um bom pai e um bom esposo, em um assassino vulgar sem alma nem coração. E as cenas da tragédia fatídica, dia e noite em sua retina, perturbavam sua memória roubando-lhe o sossego e o bem-estar. Eliminara friamente, como o caçador que mata o inerme pássaro, aquele que o criara com amor e carinho e que o havia ajudado como se ajuda um filho a quem dedicamos toda a nossa afeição. Sem forças para conter o estado de alucinação que o dominava deixa que seus pensamentos vagueiem por todos os lados em busca de um lenitivo para a sua dor. Não encontra uma solução satisfatória para o caso e resolve afastar-se da mãe abrindo assim, entre ambos, um abismo que o levaria à prática de outros crimes que o afastariam de Deus e da Sociedade. O inquérito que deu causa ao rompimento de mãe e filho positivara a participação de Maria Cassalho no assassinato de seu esposo Zeca Inácio, sendo, por isso, oferecida pelo Ministério Público a respectiva denúncia que foi recebida pelo juiz de direito da comarca. Depois de passar pelos trâmites legais o processo foi julgado e a ré condenada a três meses de detenção.

Se não nos enganamos foi na manhã de uma segunda-feira do mês de outubro de 1921. Da capelinha dos Vazes vários trabalhadores seguiam em direção ao bairro dos Rodrigues onde, naquele dia, teria lugar um “ajuntamento” para carpição de uma roça de milho pertencente ao fazendeiro Custódio Rodrigues. A um quilômetro mais ou menos do povoado, quando subiam o Morro da Lagoinha, bastante inclinado, os referidos trabalhadores avistaram no alto do morro, à beira do caminho, um vulto que, de longe, não podiam bem distinguir. Minutos depois verificavam eles que se tratava do corpo do lavrador Joaquim Albino, morador naquele bairro e pessoa bem relacionada, trabalhadora, honesta, sem rixas nem inimigos. Suas vestes estavam manchadas de sangue e sua cabeça toda quebrada. Um dos trabalhadores parte correndo para a casa do inspetor de quarteirão avisando-o do acontecido. Sem esperar maiores detalhes o inspetor encaminha-se para o local do crime providenciando a imediata remoção do cadáver para Cambuí, o que foi feito quase em seguida.

No auto de corpo de delito, como peritos, funcionaram os farmacêuticos Sidney Amaral Menezes e José de Barros Duarte, profissionais habilitados a substituírem, no caso, os doutores em medicina. Ato contínuo o Sr. Delegado de polícia dirigiu-se ao local onde se dera o crime iniciando-se logo as investigações. Quando já se considerava vencido pensando num caso sem solução, um rastro, maior que os demais ali existentes, chama sua atenção mostrando-lhes claramente que ali estivera presente, naquela noite, uma pessoa de pés disformes capaz de ser o personagem principal do drama tétrico e sangrento que se desenrolara entre a vítima e seus algozes. Medindo o rastro encontrado o Sr. Delegado de polícia foi anotando tudo o que pudesse servir-lhe de pista para a descoberta do criminoso ao mesmo tempo que notificava várias pessoas dos arredores para comparecerem à Delegacia naquele dia. Na cidade o Sr. Delegado de polícia iniciou logo o inquérito ouvindo as testemunhas arroladas, ali presentes, entre as quais se encontrava o lavrador Francisco Alves de Lima, conhecido por Chico da Eugênia, cujos pés de tamanhos anormais chamaram logo sua atenção. Inquirido sobre o fato Francisco de nada sabia em virtude de residir distante do lugar onde se dera o crime. Entretanto a medida tomada de seus pés correspondia perfeitamente a que se encontrava em poder da autoridade policial. Interrogada várias vezes a testemunha negou ser ela a autora de tal crime. Estivera em sua casa durante toda a noite ignorando por isso o que acontecera. Mas a autoridade encarregada do inquérito, certa de estar diante do autor da morte de Joaquim Albino, pede ao governo de Minas a vinda de um delegado especial para dirigir os trabalhos. Designado pelo Chefe de Polícia de Belo Horizonte para proceder às averiguações em torno do crime, chega a Cambuí o tenente Agenor, da Força Policial Mineira, encarregado de prosseguir nas investigações. Alto, aloirado e de atitudes enérgicas, o tenente Agenor emprega todos os seus esforços para desvendar o misterioso crime do Morro da Lagoinha sem nada, de positivo, descobrir. A negativa sustentada por Chico da Eugênia, o suspeito, era peremptória e convincente — e uma confissão, falsa e mentirosa, arrancada pela sevícia de autoridades perversas e desumanas, era, naquele caso, bastante absurda porque o apontado como criminoso, apesar de rude, tinha firmeza de caráter e a consciência tranquila capaz de suportar, com dignidade e resignação, todos os castigos a que fosse submetido, mesmo que para isso tivesse de recorrer ao impossível. Em defesa de sua inocência enfrentaria a própria morte se preciso fosse.

Chico da Eugênica fora espancado, maltratado e torturado, mas não se intimidou, não se acovardou nem se deixou vencer. Depois de inutilizado para o trabalho e para a vida Chico da Eugênia foi posto em liberdade. Da prisão onde se encontrava saiu de cabeça erguida, embora cambaleando de fraqueza e de costelas quebradas. E a morte do infeliz trabalhador Joaquim Albino entrou para o rol das coisas indecifráveis, misteriosas, insondáveis e esquecidas!

Capítulo III

Por motivos políticos é assassinado, covarde e traiçoeiramente pelas costas, na Praça da Matriz de Cambuí, o juiz de direito da comarca, Dr. Carlos Francisco de Assunção Albuquerque Cavalcanti.

Há quarenta anos mais ou menos a direção política de vários municípios do interior mineiro estava entregue aos juízes togados que enfeixavam em suas mãos dois altos poderes: o da magistratura e o da política partidária. Cambuí não podia fugir à regra — e à frente de sua política, com a batuta nas mãos, encontrava-se o juiz de direito da comarca, o paraibano Carlos Francisco de Assunção Albuquerque Cavalcanti. Bom para uns e mau para outros o chefe político cambuiense possuía amigos e inimigos; gente que o bajulava e gente que o odiava, bem como os que desempenhavam papel asqueroso do leva e traz criando inimizades e fazendo gerar o impetuoso desejo de vingança. E naquela cidade pequenina o ambiente foi se tornando irrespirável sob a ameaça constante de sérias perseguições.

Em dezembro de 1921 o Sr. promotor público da comarca, bacharel Múcio de Abreu e Lima, por razões que desconhecemos, organiza um partido político em oposição à política dominante chefiada pelo juiz Carlos Francisco de Assunção Cavalcanti. Chefiando a nova agremiação partidária estavam as figuras de prestígio do Cel. Higino de Oliveira César, José Egídio da Silva, José Lopes Pacífico Sobrinho, José Cândido Lambert e muitos outros que aspiravam a mudança do panorama político de Cambuí. A inauguração do partido oposicionista foi feita com passeatas pelas ruas da cidade, bandas de música, foguetório, discursos inflamados e bebidas à vontade no Hotel dos Viajantes, à rua Cel. Lambert, de propriedade do Sr. Torino Visconti.

A notícia da fundação de um partido oposicionista em Cambuí causou, como não podia deixar de causar, em todas as camadas sociais do município, o medo e o espanto, o desassossego e a insegurança ante a manifestação de tanta audácia demonstrada por aqueles que iriam, dali em diante, enfrentar o poderio de um chefe disposto a dar combate sem tréguas aos rebelados de sua comunidade. Entretanto Cambuí precisava de paz, de harmonia e de sossego, e não de provocações, de perseguições, de disse que disse e de intriguinhas baixas e perversas que só acirravam os ânimos, aumentavam a paixão partidária e concorriam para que o incêndio se propagasse envolvendo em suas chamas homens e mulheres, velhos e crianças, tais as promessas e as ameaças das duas facções em luta. A casa do magistrado era guardada dia e noite por amigos da família e por seus correligionários políticos receosos de um ataque pessoal, enquanto cartas anônimas chegavam diariamente às suas mãos ameaçando-o de morte caso não abandonasse a cidade. Desenhos de punhais, cruzes e armas de fogo acompanhavam essas missivas que só se tornaram conhecidas, mesmo da família e de seus íntimos, depois de sua morte. Entretanto o juiz não temia as ameaças dos adversários viajando só e percorrendo sua propriedade agrícola a mais de três quilômetros da sede do município tendo por companhia exclusivamente o seu cavalo alazão.

Em fins de 1921 e começo de 1922 os boatos fervilhavam pela cidade deixando os cambuienses atordoados, inquietos e sobressaltados. Se não nos enganamos foi aos primeiros minutos do dia 15 de fevereiro de 1922, quando a cidade dormia tranquila e sossegada, que o inesperado aconteceu: vários tiros foram disparados num dos ângulos da cidade acordando toda a sua população. — “O que há, o que não há, o que foi, o que não foi”, até que todos ficaram sabendo: a patrulha composta de praças do destacamento e mais o sr. delegado de polícia haviam sido atacados de surpresa por vários oposicionistas, morrendo no tiroteio o soldado de nome Inocêncio. Os demais componentes da patrulha escaparam por verdadeiro milagre, pois não morreram todos em virtude de um disparo casual da arma de um dos tocaiados, antes do momento combinado. O ambiente era carregadíssimo tanto na sede do município como na zona rural onde o ódio, aos poucos, ia se expandindo e se apoderando dos corações bem formados. A morte do soldado Inocêncio irritara mais os ânimos gerando o desejo de vingança. A Lua ia alta e as estrelas, bem no alto, brilhavam trêmulas como se a terra, balançando, movesse o firmamento. Naquele bairro distante as opiniões partidárias se dividiam mesmo entre os parentes mais próximos. Era madrugada e no silêncio de uma noite de luar vários homens caminhavam cautelosamente em direção à fazenda do Sr. Zenóbio Morena, oposicionista e forte cabo eleitoral. Chegados à fazenda batem com insistência na porta sem contudo ser atendidos. Novas batidas se fazem ouvir sem resultado nenhum.

— Derrubamos a porta, propôs um do grupo, enquanto cinco ombros unidos forçam a porta da casa. Do lado de dentro o fazendeiro espera de faca em punho a entrada dos atacantes. A porta cede e o primeiro que entra dá um gemido e cai. Os demais tentam avançar, mas recuam ante a posição defensiva do dono da casa. Do lado de fora um patamar de três degraus recebe a luz clara do luar. No limiar da porta, indecisos, quatro vultos se entreolham quando de dentro da casa uma voz grossa se ouve: “Previnam que lá vai chumbo grosso Paula Sousa”. Como autômatos saltam o quatro para fora, precipitados, deixando um deles cair sua espingarda. Zenóbio, desorientado, avança e agarra a espingarda enquanto o grupo se espalha e toma posição. De peito descoberto, no alto do patamar, o fazendeiro alveja o rapaz que deixara cair a espingarda ferindo-o gravemente. Não conseguiu dar mais ao gatilho porque uma saraivada de balas, partindo de vários pontos do terreiro, o abate para sempre. Tio e sobrinho foram as personagens daquela luta sangrenta que roubara a vida a dois homens honestos e trabalhadores, vítimas de um partidarismo exagerado.

Em abril de 1922, quatro meses após a fundação do partido oposicionista, vem a Cambuí, em visita pastoral, D. Octavio Chagas de Miranda, bispo de Pouso Alegre. Nessa ocasião, a cidade estava às escuras e por isso foi ligado ao cinema um possante holofote para iluminar a parte superior da praça quando Sua Excia. Revma., paramentando-se em casa do Sr. Herculano Duarte, tivesse de se dirigir à igreja. Ligado o holofote, cujos raios de luz partiam de uma das janelas do prédio onde funcionava o cinema, a parte inferior da praça, a começar da janela da referida casa de diversões, ficava na mais completa escuridão. Às sete horas da noite a luz forte do holofote ilumina a parte de cima da praça enquanto o Sr. Bispo Diocesano, paramentado, dirige-se para o templo. Nessa mesma hora, o Sr. Dr. Juiz de Direito da comarca, em companhia de sua esposa e filhos, deixa sua residência e se encaminha à igreja subindo pelo lado esquerdo da praça onde a escuridão era intensa e impenetrável. Caminhava o magistrado despreocupadamente entre sua senhora e filhos quando, inopinadamente, traicoeiramente, é atingido na nuca por uma desproporcional carga de chumbo, caindo ensanguentado e quase sem vida no passeio da praça municipal da cidade.

Nessa ocasião morávamos na antiga Rua da Palha, atual Padre Caramuru, próximo à esquina que dava para o Largo da Matriz. Ato contínuo ao tiro, cujo eco reboou pela cidade toda, eu e minha senhora percebemos que duas pessoas desciam em disparada carreira o “Beco do Justiniano” quebrando a esquina à esquerda para descerem a rua. Ao passarem por nossa casa ouvimos quando um deles, o que corria atrás, naturalmente, gritara ao que ia na frente: “Para, para, bandido, senão te atiro” ao mesmo tempo que o outro virando-se rapidamente respondia ao pé da letra: “Atira, atira, seu desgraçado, o que mais está esperando?” E vendo que o outro não se movia pôs-se de novo a correr. Reconhecemos com precisão a voz de ambos e a posição em que corriam: Belisário descia na frente e em sua perseguição um dos correligionários de juiz que, por medo ou covardia, não prendeu o criminoso nem teve a coragem precisa para depor no processo. Como não podia deixar de ser, esse assassinato abalou profundamente a população cambuiense e várias prisões foram efetuadas naquela noite. Na cidade ninguém conseguiu conciliar o sono pensando no que poderia acontecer. No dia seguinte às nove horas mais ou menos um boato contristador tomou conta da cidade: “De Bom Jesus do Córrego, dirigidos pelo chefe João Emiliano, sessenta ou setenta cavaleiros, armados e municiados, caminhavam para Cambuí dispostos a linchar todas as pessoas presas naquela noite como suspeitas de terem participado da morte do juiz Cavalcanti”. Confirmada a veracidade da notícia Antônio de Paiva Cardoso Júnior, José Alexandre de Morais e Antônio Felipe de Sales procuram D. Octávio Chagas de Miranda pedindo a intervenção de S. Excia. Revma. junto aos ânimos exaltados a fim de evitar a monstruosidade que estava para ser praticada. Na entrada da cidade D. Octávio esperou os amotinados impedindo, com seus sábios conselhos, a consumação de uma carnificina na qual pereceriam culpados e inocentes. O crime havia sido premeditado e sua execução quase perfeita não fossem os antecedentes dos indivíduos apontados como suspeitos e desaparecidos na mesma noite.

Como mandatários do crime foram pronunciados João Belisário e Alfredo Lúcio. Submetidos a julgamento foram absolvidos pela absoluta falta de provas, o mesmo acontecendo com as pessoas envolvidas e pronunciadas como mandantes. Em liberdade e isento de responsabilidade criminal pela morte do juiz, João Belisário conta aos amigos como havia feito para praticar o crime; como fugira e onde se escondera até a sua apresentação à polícia acompanhado do rábula Basílio de Sá, competente profissional residente em Camanducaia.

Capítulo IV

No município de Camanducaia onde passara a residir, numa casinha à beira da estrada, Belisário aterrorizava os que, para irem a Bragança Paulista, eram forçados a passar pela frente de sua casa Calmo, de olhar vivo e observador, João Belisário conservava sempre o sangue-frio sem manifestar suas ideias, seus desejos ou seus pensamentos, mesmo quando interpelado por seus amigos ou insultado por alguém que estivesse disposto a lutar peito a peito, cara a cara, em campo amplo e aberto. Nessas ocasiões Belisário não oferecia resistência e deixava que o adversário se expandisse em palavrões, em desaforos e impropérios de todos os naipes. Não perdia o controle, não se exasperava e muito menos falava. Certa vez, num dos botequins da capelinha dos Vazes, Antônio Fróes, um velhote de seus cinquenta para sessenta anos de idade, tivera com ele séria desinteligência chegando mesmo, em dado momento, a se atracarem. Não sabemos ao certo qual dos dois atacou primeiro, mas podemos afirmar, sem receio de errar, que foi o velho Fróes, embora por todos conhecido como homem pacato, bondoso e até inofensivo. O que houve antes de ambos se engalfinharem não sabemos explicar; apenas soubemos por intermédio dos que assistiram à luta que Fróes, ligeiro como o buscapé, aplicara em Belisário uma gravata que o tonteou, o desorientou e o pôs fora de si quando sobre alguns barris vazios foi cai pesadamente. João Belisário que na queda ferira o rosto e as mãos não reagiu à altura deixando o boteco vendendo azeite.

De outra feita, por motivos que agora não vêm ao caso, Manuel Euzébio da Costa, num dos hotéis de Camanducaia, atira-lhe ao rosto desaforos de todos os tamanhos incitando-o à reação. Belisário, porém, não quer saber de prosa, não quer saber de encrencas — e mais uma vez retira-se cabisbaixo. Mas pensando bem João Belisário não era homem medroso, não podia ser. Quantas e quantas vezes saraivadas de balas “cantaram” aos seus ouvidos enquanto escoltas armadas, municiadas e “industriadas”, seguiam seus rastros pelas estradas. Embora fosse procurado pela polícia por toda parte estava presente aqui, ali e acolá; nas cidades, nos bairros ou nas capelinhas, com sua carabina a tiracolo, viajando a cavalo ou a pé, conforme o lugar em que se encontrasse.

Não querendo mais residir em Cambuí, João Belisário muda-se para o município de Camanducaia indo morar numa casinha à beira do caminho, no bairro dos “Passa Tufos”, próximo ao povoado de Itapeva. Foi justamente nessa ocasião que tive de fazer uma viagem para São Paulo. Montando um cavalo trotão, feio como o diabo e magrinho como um palito, saí de Cambuí numa manhã límpida e clara de uma quinta-feira de setembro de 1925. Caminhando devagar para evitar o trote duro do animal ia pensando, estrada afora, na “assombração” que a seis ou sete quilômetros de Camanducaia estaria me esperando quando tivesse de passar pela casa de Belisário.

Quando menos esperava estava à entrada de Camanducaia sob um sol quente e abrasador. O relógio da Matriz da cidade, nesse momento, anunciou, em badaladas firmes e sonoras, as dez horas da manhã. À minha mente veio então a figura de Belisário, tagarelando pelos botequins da cidade contando sua vida e suas façanhas — e ao ver-me, de longe, vir correndo para mim, sorrindo e contente, para descrever-me seus crimes. Diante de tais pensamentos não vacilei nem hesitei tomando a primeira rua da direita, deserta e sem moradores, indo sair um pouco acima da caixa d’água, na saída para Itapeva. Não havia ainda caminhando duzentos metros depois que deixara a cidade quando ouvi o galopar de um animal que, segundo me parecia, vinha de rédeas soltas e a toda velocidade. Voltando-me na sela quase tive um desmaio ao reconhecer no cavaleiro que galopava, querendo me alcançar, o conterrâneo João Belisário, trazendo ao ombro a sua inseparável “44”. Quando alcançou-me eu não sabia onde estava, a cor que tinha no rosto e se sofria de tremedeira.

Com seu animal juntinho ao meu, tão paralelos que os nossos pés se encontravam, João Belisário foi logo dizendo:

— “Olá, José, você por estas bandas? Como vai o nosso povinho, a sua família, os nossos amigos?” Fazendo um esforço supremo consegui gesticular qualquer coisas como a dizer-lhe que o povo ia bem, com saúde e, aliás, satisfeito, ao mesmo tempo em que também lhe perguntava pela família, como estava passando e se estava dando algumas voltinhas.

— Estou, respondeu-me ele, continuando com a palavra: com a crise que ora atravessamos, você sabe, não podemos parar. Em casa não se ganha nada e a gente andando um pouco algum negócio sempre se arranja.

— É verdade, confirmei, a gente mexendo um pouco alguma coisa sempre aparece.

Houve uma pausa de minutos, finda a qual Belisário falou novamente:

— “Eu, como você sabe, sou tido como um homem mau, perverso e não sei mais o quê. É verdade que não sou boa pinga, mas também não sou tão ruim como muita gente pensa. Não bebo, não jogo, não fumo, respeito a mulher alheia e não provoco quem quer que seja. Agora se me tiram fora do sério... procuram bancar o valente, o bambambã, então, sim, perco a paciência e repreendo o malcriado. Já por várias vezes tenho demonstrado o quanto sou capaz quando chamado para o desempenho de certas ‘funções’” contando, com um cinismo de estarrecer, alguns dos crimes que praticara. “Fulano de Tal”, citou um nome, “me fez tal coisa e eu preciso me vingar. Não o matarei pelas costas, não; quero dar-lhe um tiro na testa para que nunca mais ele possa descompor os outros em público como fez comigo no hotel do Nabor.”

Dei graças a Deus quando avistamos a sua casa depois de uma caminhada de mais de uma légua juntos. Quando chegamos Belisário convidou-me para tomar um cafezinho ou almoçar em sua companhia, o que não pude aceitar em virtude de sentir, naquele momento, uma formidável dor de barriga.

Capítulo V

João Belisário dá provas de que não tem o corpo “fechado” nem é invisível nas horas precisas, fugindo em desabalada carreira ao ouvir o eco de alguns tiros.

Infelizmente há muita gente por este mundo de meu Deus que acredita em feitiçarias, em lobisomem, em mula sem cabeça e em outras coisas absurdas e fora de lógica que até sentimo-nos acanhados em transportá-las para o papel. Há, por exemplo, os que creem na invisibilidade de certas pessoas, que, por isso, livram-se facilmente das balas, do chumbo e das lapianas bem afiadas dos seus inimigos. Por ocasião dos acontecimentos que agora vamos narrar João Belisário residia no município de Camanducaia — e como nessa época estivesse quite com a Justiça de sua terra, semanalmente aparecia por lá demorando-se dois ou mais dias em “visita” aos conhecidos que o recebiam sempre receosos de alguma coisa. As comadres conversavam em surdina e os vizinhos, entre si, cochichavam alertando unas aos outros do perigo que corriam.

Montando seu cavalo pinhão e de “44” ao ombro, João Belisário estava sempre em Cambuí causando medo aos habitantes da cidade e seus arredores e implantando o pânico entre os que com ele tinham negócios. Ninguém dormia sossegado e a tensão nervosa da maioria dos que habitavam a cidade já se tornava quase um caso patológico. Entretanto Belisário não atacava quem quer que fosse fora de determinados objetivos, e também não tinha ódio nem rancor por ninguém nem tampouco descarregava suas armas por dá cá aquela palha. Mas os cambuienses receavam a fera e evitavam a sua aproximação sem dar-lhe chance para um encontro ou uma conversa fiada. A sua convivência e as suas relações de amizade estavam afetas a meia dúzia de pessoas que o recebiam em casa mais por medo de serem por ele “marcadas” que mesmo por simpatia ou pelos negócios que com ele mantinham.

O ambiente da cidade quando estava presente João Belisário era carregado e irrespirável, por isso algumas pessoas honestas e corajosas, querendo libertar Cambuí da presença de tão perigoso indivíduo, resolveram pôr fim àquela situação eliminando o causador da intranquilidade das famílias cambuienses. Numa reunião onde compareceram várias pessoas de responsabilidade ficou deliberado que, para o benefício de todos, João Belisário devia desaparecer da face da terra, desta ou daquela maneira, a qualquer preço. Semanalmente Belisário vinha a Cambuí demorando-se de dois a três dias, e como pernoitava na casa de um amigo residente nos subúrbios da cidade, ao recolher-se todas as noites, forçosamente desceria o “Beco do Zeca Luiz”, passando em frente ao prédio onde, no começo desta história, localizamos o Hotel dos Viajantes. Ficou concertado então entre os que compunham o grupo que cinco deles, armados e municiados, esperariam Belisário em determinado lugar — e quando ele por ali passasse seria alvejado sem dó nem piedade a tiros de revólveres, de espingardas — e até de um velho trabuco que um morador do Cambuí Velho guardava como lembrança e relíquia da Guerra do Paraguai. Entretanto a turma esperou em vão que a caça aparecesse, mas ela, esperta e ativa como ninguém, farejara a presença dos caçadores e dera às de Vila Diogo.

Inexplicavelmente, daquele dia em diante, Belisário deixou de passar por aquele beco, afastando-se da casa onde antigamente morara o velho farmacêutico Zeca Luiz.

Cansada de passar noites sem dormir e de aguardar a passagem de alguém que parecia não existir, resolve a turma traçar novo plano pondo-o logo em ação. No primeiro dia em que Belisário aparecesse na cidade, três ou quatro do grupo o esperariam na saída para Camanducaia — e quando por eles passasse seria mandado para a cidade dos pés juntos ou para o beleléu. Firmes nessa resolução esperaram a oportunidade que não se fez esperar. Poucos dias depois João Belisário apareceu na cidade montando seu cavalinho pinhão. Na tarde daquele mesmo dia três pessoas pertencentes à sociedade cambuiense subiram, sutilmente, o Morro do Cemitério aguardando, dentro de um valo à margem da estrada, a passagem de sua “presa” que naquele dia, com toda certeza, não escaparia às suas balas. Em posição de fogo, distanciados 25 metros mais ou menos um do outro para evitar que os três disparassem suas armas ao mesmo tempo, aguardavam com paciência a passagem de Belisário.

— Se ele passar por mim e eu errar, disse o primeiro dirigindo-se ao que ia ficar no meio, não escapará de você — e se por uma bamba você não acertar ele não escapará de Fulano que é o melhor atirador sul-mineiro. Se ele acerta numa moeda de 200 réis a trinta metros de distância não é crível que naquele corpão ele deixe de acertar.

— É verdade, confirmou o outro piscando um olho para o companheiro.

As horas pareciam não ter mais fim tal a preguiça com que se moviam os ponteiros dos relógios dos três moços dentro do valo.

Quando o sol já se escondia atrás da Serra dos Vazes eles ouviram vozes vindas do alto do Cemitério — e para espanto dos três, Belisário não estava só. Em sua companhia, montando cavalo pampa, viajava um homem de cabelos e barba cor de fogo, reconhecido segundos depois como sendo João Vermelho, morador do bairro do Cemitério, próximo daquele lugar. Paralelamente caminhavam os dois cavaleiros com João Vermelho à direita, do lado em que estavam os rapazes. Alegres, contentes e felizes, conversando animadamente, os dois passaram pelo primeiro pistoleiro, pelo segundo e pelo terceiro sem que nenhum deles pudesse atirar. O terceiro que possuía um gênio brincalhão, depois que os cavaleiros passaram por sua frente, teve uma ideia extravagante e um pouco desconcertante: erguendo seu revólver para o ar deu ao gatilho várias vezes espantando os cavaleiros que dispararam desabaladamente enquanto o eco dos tiros reboava encostas afora.

Os rapazes “desconcertados” desceram o morro do Chico de Brito, margearam o rio das Antas e subiram o capoeirão que dava para a estrada dos Vazes, de onde, um a um, foram entrando na cidade. Na ocasião poucas pessoas ficaram sabendo os nomes dos que dispararam suas armas quando Belisário, em companhia de João Vermelho, passava pelo “Morro do Cemitério”.

Capítulo VI

Um monstro cruel e insaciável penetra altas horas da noite num ranchinho de sapé, matando, num requinte de perversidade, uma família inteira e mais os animais domésticos que se encontravam dentro de casa.

Na tarde daquele dia triste e silencioso, quando os últimos lampejos do sol já se escondiam atrás da serra distante, no bairro dos Quilins, distrito de S. José de Toledo, então pertencente ao município de Camanducaia, Pedro Quilin está apreensivo, meditabundo, como se algo de anormal estivesse para acontecer. Do terreiro de sua casa residencial, ele perscruta o horizonte como a querer desvendar o que ele próprio não saberia explicar. A três quilômetros dali vários corvos fazem evoluções, subindo e descendo, como se por ali houvesse alguma carniça. Estranhou o fazendeiro que, quase noite, os urubus sobrevoassem aquele lugar. Olhou para o poente amarelado que acabava de recolher o majestoso disco solar e viu que não era possível, àquela hora, dar uma chegada até lá — e fazendo mil conjeturas recolheu-se para dormir.

No dia seguinte ao amanhecer, Quilin arreia seu animal rumando para o local onde, na tarde do dia anterior, vira uns urubus em festim. Meia hora depois, já quase ao nascer do sol, Quilin estava à beira de um matagal, a poucos passos de uma picada que o levaria até o ranchinho de sapé que sabia lá existir. Esporeando seu animal Quilin segue pela picada, mato adentro, apreensivo, como se quisesse adivinhar o que, dentro em pouco, seus olho iriam ver. Aproxima-se cautelosamente da palhoça — e o que seus olhos veem aterroriza-o gelando-lhe o sangue. Imóvel em cima do animal Quilin não tem forças para descer. Contempla como um idiota o drama tétrico e pungente que tem diante de si. No interior do rancho, inanimados, seis corpos humanos começam a se decompor. São os cadáveres de um pai, de uma mãe e de quatro filhos menores assassinados traiçoeiramente às altas horas da noite. No chão úmido dois cachorros e um gato estavam deitados, mortos como os demais, massacrados e trucidados. Comovido com o lúgubre espetáculo, quase inconsciente, Quilin deixa o rancho dirigindo-se à casa de Pedro Fagundes, inspetor de quarteirão do bairro, contando-lhe o que vira e observara, pouco antes, no rancho do matagal. Pedro Fagundes, montado no seu cavalo tordilho, segue para a sede do distrito enquanto a notícia angustiante espalha-se pelos bairros vizinhos. Horas depois chegam ao bairro, acompanhados por Pedro Fagundes, as autoridades toledenses determinando a remoção dos cadáveres para Toledo. Uma onda de emoção e revolta apodera-se dos moradores dos arredores. As barbaridades praticadas contra indefesas crianças, massacradas estupidamente, não podiam ficar impunes; era preciso que o monstro pagasse caro o hediondo crime.

Várias autoridades policiais vindas de Belo Horizonte, para investigações, fracassaram redondamente apesar do zun-zum que corria de boca em boca de que o massacre de Toledo havia sido o epílogo de uma terrível vingança. A imprensa paulistana, carioca, belo-horizontina e de outras capitais do país, publicou, na ocasião, ampla reportagem sobre o acontecimento solicitando das autoridades mineiras que se fizesse justiça. Vinte dias após os fatos aqui narrados, na Delegacia de Polícia de Socorro, aparece um senhor de meia-idade, claro, de olhos azuis e nariz achatado, de rosto oval e estatura mediana, dizendo ser testemunha ocular do crime ocorrido dias antes no distrito de São José de Toledo. Diante de tal afirmativa mandou o Sr. Delegado de polícia daquela cidade que se tomasse por termo as suas declarações. Se não nos falha a memória o desconhecido disse mais ou menos o seguinte:

“Que no dia em que se deu o crime que tanto abalou a opinião pública de toda a região sul-mineira o depoente viajava da localidade de São José de Toledo, no estado de Minas, para a cidade de Socorro, no estado de São Paulo; que viajando a pé, depois de percorrer vários quilômetros, cansado e exausto, deitar-se à sombra de uma árvore adormecendo profundamente; que ao acordar já era noite não sabendo por isso qual o caminho a seguir; que andando ao léu sob a luz das estrelas, sem rumo ou destino certo, embrenhou-se no mato indo encontrar num cerrado um rancho de pau a pique; que aproximou-se do rancho chamando por ‘ó de casa, ó de casa’, respondendo um senhor ainda moço que o convidara para entrar e ao qual narrara suas peripécias depois de ter-lhe pedido agasalho por aquela noite. Com a hospitalidade peculiar de nossos caboclos, ao viandante foi dado abrigo e um modesto jantar foi-lhe oferecido sob a fraca luz de um lampião a querosene. Prosseguindo em sua narrativa disse a testemunha que depois do jantar a senhora do hospedeiro lhe improvisara no compartimento que servia de sala, sob uma velha esteira, um modesto leito para que ele pudesse repousar um pouco; que altas horas da noite, depois de ter dormido bastante, acordara com um pequeno barulho percebendo então que um vulto, cautelosamente, erguia os paus que serviam de porta e sorrateiramente penetrava dentro do rancho enquanto as pessoas da casa dormiam tranquilamente; que nessa ocasião, pela claridade do luar, reconhecera na pessoa que acabava de entrar o facínora João Belisário e que nesse momento, aproveitando-se da abertura deixada pelo “visitante”, fugira sem mais demora embrenhando-se no mato conseguindo, três dias depois, alcançar aquela cidade para então dizer a verdade.”

Este depoimento foi lido pelo autor desta narrativa quando escrivão de polícia na comarca de Camanducaia. A testemunha em questão foi julgada débil mental — e por isso sem valor as suas declarações. E assim o caso ficou encerrado passando para o rol do esquecimento sem que se descobrissem os responsáveis materiais e intelectuais daquela tremenda tragédia. Alguns anos mais tarde, na cidade de Pouso Alegre, quando se encontrava para morrer, um mulato desses que não recuam diante das maiores atrocidades, chama à beira de seu leito alguns amigos e, calmamente, sem demonstrar remorsos ou arrependimentos, como um cínico que não teme a Deus e à Eternidade, confessa ser ele o autor da carnificina praticada no interior do ranchinho de sapé, no distrito de Toledo, naquele mês de março de 1923. Não sabemos até que ponto essa confissão é verdadeira uma vez que é destituída de quaisquer pormenores, obscura mesmo, sem os esclarecimentos imprescindíveis como os referentes aos motivos que determinaram a eliminação daquela família. Sim, porque não podemos crer que a tragédia que teve como protagonistas pessoas simples, humildes e de uma pobreza quase extrema, fosse originada apenas pela vingança. Tamanha perversidade, a nosso ver, só poderia ser praticada por um anormal em pleno período de desequilíbrio mental.

Capítulo VII

João Belisário deixa cair a máscara e o mistério que envolve o latrocínio praticado na pessoa de Joaquim Albino e desvendado por seus próprios autores.

O crime de São José de Toledo, como dissemos no capítulo anterior, foi comentado pela imprensa metropolitana e interiorana com ilustrações as mais variadas e emocionantes. Autoridades especializadas deslocaram-se de Belo Horizonte para o palco dos acontecimentos sem nenhum resultado. Diligências, pesquisas e estudos técnicos fracassaram por completo. Meses após o crime João Belisário deixa o município de Camanducaia transferindo sua residência para o município de Ribeirão Vermelho, no estado de São Paulo, onde, segundo nos parece, agora reside. Naquela cidade, João Belisário encontra-se constantemente com vários caixeiros-viajantes, seus conhecidos, muitos deles de Cambuí. Confiando demasiadamente nesses viajantes e na boa estrela que o guiava desde o seus primeiros contatos com a Justiça, João Belisário resolve, por ignorância ou por cabotinagem, contar a seus amigos e conterrâneos os principais fatos ocorridos em sua vida criminosa, desde o instante em que resolvera, em definitivo, dar cabo de seu pai adotivo naquela longínqua e lúgubre tarde do mês de junho de 1909, incluindo na sua narrativa o assassinato de Joaquim Albino ocorrido há vários anos numa fria e nebulosa noite do mês de abril de 1921.

Com a palavra do petulante e asqueroso narrador a martelar-lhe os ouvidos os cambuienses voltavam de Ribeirão Vermelho tristes e aborrecidos sem conseguir esquecer as bazófias e as fanfarronices do conterrâneo despudorado. Um dia, porém, esses viajantes resolveram levar tudo ao conhecimento das autoridades mineiras pedindo-lhes providências prontas e enérgicas no sentido de ser posto um paradeiro naquele estado de coisas. Tomando conhecimento da denúncia o delegado de polícia de Cambuí oficia imediatamente ao chefe de polícia de Belo Horizonte expondo-lhe o fato e pedindo-lhe a designação de uma autoridade policial para superintender o inquérito a ser aberto para apurar a veracidade da denúncia chegada àquela delegacia. Sem perda de tempo a Chefatura de Polícia de Minas designa o mesmo tenente Agenor, que já trabalhara no processo, para prosseguir nas investigações policiais. Embarcando no dia seguinte para Cambuí o oficial mineiro chega àquela cidade após a estafante viagem de dois dias e duas noites pelos incômodos e apertadíssimos carros da Oeste de Minas e da Rede Mineira de Viação.

Por mera coincidência havia chegado a Cambuí, poucos dias antes do tenente, o Sr. Benedicto Inácio, irmão de Belisário e também residente em Ribeirão Vermelho. Sabedor da presença de Benedicto no município o tenente manda convidá-lo para comparecer à Delegacia no dia seguinte às 12 horas. Antes da hora marcada Benedicto já se encontrava na cidade, pronto para depor. Ao meio-dia precisamente o delegado inicia o interrogatório. O interrogado vacila em suas respostas e o oficial o ameaça de trancafiá-lo na prisão usando a borracha e o cinturão. Não foi preciso mais nada para que Benedicto se abrisse pormenorizando todos os fatos: não tinha sido ele o autor da morte de Joaquim Albino; quem o matar friamente a pauladas havia sido seu mano João, naquela noite friorenta e neblinosa do mês de abril. Havia acompanhado o irmão na “empreitada”, é verdade, mas ignorando suas verdadeiras intenções quando, na capela, havia sido convidado para “pegarem” a vítima. Não percebera nem lhe passara pelo cérebro ser o roubo o móvel do crime. Joaquim Albino tinha em seu poder a importância de quatrocentos mil réis numa carteira surrada, dinheiro esse visto por João Belisário na véspera do crime quando a vítima, num dos botequins do povoado, jogava o tal de vinte e um.

Pousando seus olhos sobre os pés de Benedicto o tenente viu que eles correspondiam perfeitamente ao rastro encontrado no lugar da tragédia pelo delegado Teotônio Marques. Só então compreendera o quanto fora injusto ao castigar impiedosamente o inocente Chico da Eugênia. Enquanto o oficial mineiro se comunicava com a polícia paulista pedindo a captura de João Belisário, um cambuiense, de passagem por Bragança, avista-o numa das ruas centrais da cidade. Sem perda de tempo comunica-se com o sr. delegado de polícia de Bragança pondo-o ao conhecimento do que se passava em Cambuí. João Belisário que sempre foi ativo e desconfiado, percebendo na “atmosfera” qualquer coisa de anormal, tratou logo de “pinicar” antes que fosse tarde demais. No Lavapés tomou um carro de praça ordenando ao motorista que o conduzisse até Itatiba. O chofer que já o conhecia de sobra não teve duvidas em rumar para a vizinha cidade com ordem do passageiro para parar nas imediações. A um quilômetro da cidade o automóvel parou e dentro dele, descansando, João Belisário ficou fazendo hora para partir.

Quando a autoridade policial bragantina obteve de São Paulo ordem para prender Belisário, este já se encontrava a vários quilômetros dali viajando num confortável Chevrolet cujo motorista, tremendo de medo, esforçava-se para controlar-se a fim de evitar que seu carro fosse cair na barroca. Mas o Sr. delegado de polícia de Bragança, tomando as providências exigidas em tais casos, solicitara de seus colegas das cidades vizinhas, por telefone, o concurso e a colaboração de todos na captura do fugitivo. À entrada da cidade de Itatiba, um pouco antes do amanhecer, João Belisário foi preso quando dormia tranquilamente no carro que o conduzira até ali.

Capítulo VIII

Prisão, fuga e condenação de Belisário

Ao ser preso naquela madrugada friorenta num dos subúrbios de Itatiba quando pretendia dar às de Vila Diogo, João Belisário não se perturbou, não se afobou nem teve a menor reação. Entregou-se calmo e sorridente ao receber voz de prisão deixando-se conduzir serenamente pelos soldados que o prenderam como se nada de anormal houvesse acontecido em sua vida. Pelo primeiro trem da Itatibense, já desaparecida, Belisário segue para a capital bandeirante de onde, no dia imediato, prossegue viagem, escoltado, para Belo Horizonte. Da capital mineira o prisioneiro foi encaminhado, dias depois e acompanhado por dois agentes de polícia, para a comarca de Cambuí onde se procedia ao inquérito instaurado para apurar as responsabilidades do crime de latrocínio praticado na pessoa de Joaquim Albino. Em transito para aquela cidade, teatro dos acontecimentos que determinaram a sua detenção, e viajando pela Central do Brasil, João Belisário tenta uma fuga espetacular, arrojada e audaciosa, saltando di trem num lugar descortinado, de várzeas e ervas rasteiras, onde em hipótese alguma encontraria um lugar para se esconder e quando a locomotiva, em sua velocidade máxima, corria entre Juiz de Fora e Santos Dumont. Não teve sorte, e a esta juntou-se o azar, fraturando o braço direito ao saltar do trem em movimento. Apertado o botão de alarme a locomotiva logo parou para que os policiais encarregados de escoltar o criminoso até Cambuí pudessem recapturá-lo novamente, o que foi feito a pouco mais de um quilômetro do lugar onde parara a composição da velha Central.

Preso e transportado para um carro de segunda classe João Belisário foi algemado com um dos policiais que o escoltavam, viajando assim até Cruzeiro pela Central do Brasil e dessa cidade até a estação de Pouso Alegre, pela Rede Mineira de Viação, onde desembarcou sob os olhares curiosos de mais de quinhentas pessoas que àquela hora se comprimiam na gare exclusivamente para esperá-lo. De Pouso Alegre a Cambuí a viagem foi rápida — e nesta cidade como naquela uma verdadeira multidão aguardava ansiosa a chegada do criminoso. Interrogado sobre a autoria do crime que lhe era imputado João Belisário negou terminantemente ter tido qualquer participação na morte de Joaquim Albino, declarando serem falsos os depoimentos das testemunhas e a declaração prestada por seu mano Benedicto.

Convicto de que Belisário estava faltando com a verdade procurando inocentar-se, o tenente Agenor, como todos os seus colegas que desempenhavam iguais funções naquela época, não tiveram dúvidas pondo em prática o seu método inquisitorial, bárbaro e desumano, castigando impiedosamente o preso humilhado a seus pés. E assim aquele homem, respeitado e temido por todos, não era mais que um joguete nas mãos disformes daquele oficial sem alma nem coração. Submetido às mais duras provações, João Belisário era torturado sem nenhum respeito aos sentimentos de humanidade, até que se desfalecia caindo ao chão sem sentidos, sem movimentos, aparentemente morto. Borracha, saltos de sapatos e os cinturões faziam com que sua boca, seu nariz e seus ouvidos sangrassem constantemente tantas eram as pancadas recebidas. Mesmo assim, em quase estado de coma, João Belisário nada dizia — e quando respondia às perguntas do tenente era para negar que tivesse tomado parte no crime pelo qual estava sendo apontado como o principal responsável. Morreria, se preciso fosse, mas não diria uma palavra sequer sobre sua culpabilidade no crime, houvesse o que houvesse, provando assim possuir uma opinião raramente encontrada entre os que, desviando do bom caminho, se enveredam pela estrada escorregadia e perigosíssima da criminalidade.

Tudo poderia acontecer na vida de João Belisário, mas confessar às autoridades a autoria de seus crimes... nunca. E o tenente Agenor, para não matar Belisário, encerra o inquérito remetendo-o ao Dr. Juiz de Direito da comarca que o encaminha à Promotoria Pública para a respectiva denúncia. Pelo Ministério Público de Cambuí, poucos dias após o recebimento do processo, foi então oferecida denúncia contra João Batista Marques e Benedicto Inácio como autores de latrocínio praticado na pessoa do lavrador Joaquim Albino, subindo os autos ao Meritíssimo Juiz de Direito da comarca, Dr. Tito Lívio Ribeiro, que, apreciando as provas colhidas através dos depoimentos de várias testemunhas arguidas no processo, lavrou sua sentença condenando João Batista Marques a penas de 30 anos de prisão, para ser cumprida na Penitenciária Agrícola de Neves, e Benedicto Inácio à pena de 17 anos para ser cumprida na mesma Penitenciária.

Capítulo IX

Fugindo da Cadeia Pública de Cambuí e homiziando-se no bairro dos “Passa Tufos”, no município de Camanducaia, João Belisário cai numa cilada preparada por seus próprios parentes sendo então novamente recapturado e remetido diretamente para a Penitenciária Agrícola das Neves de onde consegue, um ano mais tarde, ser transferido para Santa Rita do Sapucaí de cuja cadeia foge espetacularmente Passando em julgado a sentença condenatória proferida pelo juiz Tito Ribeiro, João Belisário e Benedicto Inácio aguardam o dia da partida para Neves onde seriam hóspedes forçados do dr. José Maria do Alkmim, então na direção daquela Penitenciária. Cumprindo ordens superiores em prol da revolução que secretamente se tramava nos estados de Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba, o Comando Geral da Força Policial Mineira determina, por telegrama expresso, que as praças dos destacamentos do sul sejam recolhidas sem perda de tempo aos seus respectivos quartéis, ficando assim quase todas as cidades sul-mineiras completamente desguarnecidas, proporcionando aos detentos oportunidades para fugirem. E Belisário não perde a chance arrombando a cadeia de Cambuí e fugindo em companhia de outros presos que ainda não haviam sido julgados.

No bairro dos “Passa Tufos”, João Belisário vai se esconder. Vivia ele sossegadamente ali, protegido pelos primos, sem nem de leve pensar que, em Cambuí, uma cilada lhe preparavam. Os cambuienses interessados na sua captura, sabedores de que a fidelidade, a lealdade e a sinceridade eram desconhecidas de seus parentes, fazem espalhar aos quatro ventos a notícia de que gratificariam com determinada importância a quem entregasse o fugitivo, vivo ou morto, às autoridades mineiras. Como acontece em ocasiões como essa, a notícia se espalhou e não tardou a chegar aos ouvidos dos primos de Belisário, que a receberam com indisfarçável alegria. Quatro ou cinco dias depois que a espalhafatosa notícia tornara-se conhecida nos arredores, graças aos arautos perspicazes e argutos, um dos parentes do fugitivo aparece em Cambuí como se estivesse a passeio. Mas a um ladino político daquela cidade não passou despercebida a razão da presença do “visitante” à cidade, esperando, por isso, ser procurado por ele para uma conversa em família. Dito e feito: não tardou muito para que o sabido político cambuiense recebesse, em sua casa, a visita do “leal” e “despretensioso” parente de Belisário que vinha saber se a notícia referente à gratificação oferecida pela captura do primo era, realmente, coisa séria. Tendo como resposta um “sim” pronunciado alegremente, o visitante entra logo no assunto propondo capturar o parente mediante o pagamento de três contos e quinhentos mil réis, importância que achava razoável pelo “serviço” que “abnegadamente” iria prestar à população sul-mineira. O coronel, escondendo por trás do bigode um risinho todo seu, aperta a mão do visitante pronunciando um alegre “está feito o negócio”. O primo de nada suspeitará, diz o parente da “vítima”, pois quando à noite aparecer para buscar comestíveis, eu e meus irmãos o agarraremos e o conduziremos para Camanducaia trancafiando-o no xilindró. Pode fazer o “serviço” e vir depois buscar o dinheiro, responde-lhe satisfeito o coronel.

Dois dias depois João Belisário foi “embirado” e conduzido para a Cadeia Pública de Camanducaia que, como as demais cidades do sul do estado, estava despoliciada em virtude do movimento revolucionário desencadeado pelos lideres Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Getúlio Dorneles Vargas e o imortal João Pessoa, idealizadores e executores da Revolução de 3 de Outubro de 1930. No Túnel, em Itararé e em Eleutério os soldados, dia e noite, combatiam sem parar. Em Pouso Alegre se localizava o Estado-Maior do setor de Eleutério sob o comando do general Porto Alegre. Na cidade permanecia uma bateria do 8o RAM ali aquartelado e uma companhia do 14o BC de voluntários da cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul. Para Pouso Alegre, portanto, seguiria João Belisário para, de lá, ser escoltado até Neves. No dia de conduzir o preso para aquela cidade, o Sr. João Guilherme de Macedo, delegado de polícia de Camanducaia, receoso de uma fuga, pretende conduzir o prisioneiro amarrado de pés e mãos com o que o preso não concorda dizendo ser esse um gesto antipático do Sr. delegado de polícia. Foi então chamado o dr. Francinet Barroso Salgado, Promotor Público da comarca que, ouvido, achou que Belisário tinha razão. O Sr. delegado de polícia, não querendo ser o responsável pela condução do criminoso, resolve não escoltá-lo como desejava o representante do Ministério Público de Camanducaia que, em defesa de seu ponto de vista, argumentava que escoltar o preso amarrado depunha contra a escolta que ele sabia ser composta de homens valentes e corajosos. Por isso ele chefiaria a escolta até Pouso Alegre. E assim foi feito: guardado por quatro bate-paus, em cima de um caminhão, João Marques foi dar com os costados na Cadeia Pública daquela cidade seguindo dali diretamente para a Penitenciária das Neves de onde não fugiria jamais.

E os meses correm lentamente enquanto João Belisário estuda um meio de solucionar o seu caso. Fugir era quase impossível, pois nunca imaginara existir no mundo uma prisão tão segura quanto aquela. Já estava se conformando com a situação quando um dia aparece por lá o cônego Macário de Almeida, seu conhecido, senador (1) estadual pelo PRM, então no domínio do governo estadual. Ao encontrar-se com o sacerdote o cérebro de Belisário se ilumina e uma nova aurora parece ressurgir em sua vida. Macio no falar e diplomata no conversar, não foi difícil ao prisioneiro convencer o cônego parlamentar de que precisava ser transferido para uma cidade do sul do estado a fim de poder estar em contato com seus amigos e parentes. Sensibilizado ante a “choradeira” do prisioneiro Sua Revma. promete arranjar a sua transferência para Santa Rita do Sapucaí, distante apenas cinquenta e poucos quilômetros da cidade de Cambuí, teatro de seus dramas de sangue. Quando Belisário pleiteou a sua transferência para uma cidade do interior já havia concebido a ideia de fuga, na impossibilidade de evadir-se daquela Penitenciária.

Transferido para a terra de Delfim Moreira não demorou para executar o plano que havia arquitetado meses antes, arrombando uma das grades da prisão e fugindo sem ser pressentido pela sentinela que, naquele momento, com certeza, dormia tranquilamente.

Capítulo X

Alarme no sul de Minas e a prisão do fugitivo o município de Bragança Paulista pelo tenente Olintho Ferreira Lima, da Força Pública de São Paulo. Belisário novamente na Penitenciária Agrícola das Neves e o tratamento que dispensava às mulheres.

A fuga de João Belisário da Cadeia Pública de Santa Rita do Sapucaí alarmou o extremo sul de Minas pelo medo que o criminoso infligia à sua população. Fugindo da cadeia de Santa Rita João Belisário dirigiu-se para Cambuí percorrendo os bairros do Portão, Água Comprida, Vazes e Roseta, confabulando com pessoas de sua relação de amizade. Depois de alguns dias de permanência em Cambuí seguiu para Camanducaia onde se ocultou por mais de uma semana. De Camanducaia passou para o município da Extrema entrando logo em contato com diversos moradores do distrito de Vargem, no estado de São Paulo. Uma noite, quando, a cavalo procurava atravessar uma ponte sobre o rio Jaguari, a dois quilômetros mais ou menos da sede do referido distrito, João Belisário foi surpreendido e subitamente preso pelo tenente Olintho Ferreira Lima, da Força Pública de São Paulo, chefiando na ocasião a Captura Estadual. Para o bom êxito de sua missão contou o inteligente o culto oficial com a colaboração de um dos moradores de Vargem e a quem Belisário confiava todos os seus planos. Com essa eficientíssima colaboração preparou o tenente o seu mundéu no qual Belisário foi cair como um patinho. Deste modo volta o nosso homem às cadeias de Bragança Paulista, São Paulo, e, mais uma vez, à inexpugnável Penitenciária Agrícola de Neves. Trabalhando e estudando João Belisário permaneceu lá entre 1948 quando obteve livramento condicional por seu comportamento exemplar.

Benedicto Inácio, o outro sentenciado, irmão de Belisário, na opinião do autor desta narrativa, não merecia a penalidade que lhe impusera o juiz julgador condenando-o a 17 anos de reclusão quando a sua participação no crime independeu de sua vontade diante da impossibilidade de recusar a ordem recebida do irmão na noite da tragédia. João e Benedicto, analfabetos, deixaram a Penitenciária de Neves lendo e escrevendo corretamente, tendo o último obtido livramento condicional em 1941 quando foi posto em liberdade. Em Cambuí Benedicto passou a residir, ali falecendo em 1948 cercado pelos parentes que ainda o queriam e o admiravam.

João Belisário, segundo afirmam pessoas que o conheceram ainda criança, era homem trabalhador antes de cometer seu primeiro crime. Depois, sem que saibamos por que, quase nada fazia, vivendo de barganhas de animais ou de outros afazeres mais ou menos equivalentes. Uma coisa, porém, não podemos deixar de registrar nestas “Anotações”: o tratamento que Belisário dispensava às mulheres. Em toda a sua vida de criminalidade jamais faltou com o devido respeito a uma senhora, fosse ela casada, solteira, viúva, ou mesmo uma perereca.

Ao escrevermos esta narrativa, procuramos mais que nos foi possível contar os fatos como os conhecemos pessoalmente, evitando referências aos motivos que determinaram tais acontecimentos para não ferir susceptibilidades e não envolver nos enredos emaranhados de certos casos, nomes de pessoas que muito prezamos e admiramos. Incompleta, portanto, é esta nossa primeira narrativa sobre os principais acontecimentos nos quais esteve envolvido João Batista Marques, o famigerado cambuiense ainda perambulando pelas estradas de vários municípios mineiros, paulistas e paranaenses como um fantasma a perturbar a vida de muita gente que ainda o julga um homem mau e perverso.

Não sendo um criminoso como Antônio Silvino, Dioguinho ou Lampião, Belisário só nos incomodará se a nossa morte interessar a alguém que disponha de dinheiro e coragem para mandar nos matar. Ao contrário disso, João Belisário é bom, inofensivo e até capaz de praticar o bem em consonância com a sua voz meiga, macia, atraente, delicada e cativante.

Referências:

ACLAC, patrono José dos Reis

Desafortunados